6 de abril de 2012

Andam sem destino, e raspam, com muito cuidado, o fundo das marmitas que servem também para aproveitar as migalhas, quando há pão e comem à pressa...


FORMIGA COM ASAS*


                                                                                                   Maria João Oliveira


      Os olhos claros de Charles estão em alerta constante, e o silêncio da indiferença branca viola, diariamente, a sua luz. Estremece com os gritos das formigas que saem dos buracos e se agitam nas ruas. São, apenas, formigas. Formigas sem território, formigas sem galerias subterrâneas, nem fardos comestíveis. Carregam pesos maiores do que o seu próprio corpo, sabem que não podem parar e que não convém fazer perguntas. Andam sem destino, e raspam, com muito cuidado, o fundo das marmitas que servem também para aproveitar as migalhas, quando há pão e comem à pressa.
     Charles recebera, há algum tempo, um convite terrível que tenta ignorar a todo o custo. De vez em quando, avista o cano de uma arma de fogo, ouve tiros e os silvos das sirenes, vê cadáveres de formigas pequenas, no outro lado da rua, e algumas ainda de pé, a receberem instruções sobre a melhor maneira de disparar um tiro certeiro. Também há formigas, já muito velhas, que se encostam instintivamente nos cantos, junto das paredes negras, para se sentirem mais protegidas. As noites são geladas e não há aquecimento, mas já não gritam nem lhes apetece sair do nevoeiro. Não falam e o que pensam talvez esteja na nuvem de gelo que lhes sai da boca. Encolhem os ombros, quando vêem os cães mortos, mal o dia desaba sobre montões de lixo e sobre o formigueiro que se agita nas ruas. Já não sonham com os casebres inabitáveis do gueto. Os seus próprios corpos são, há muito, um estorvo que eles acabam por ignorar, como se já não lhes fizessem falta. Sabem que nenhum sino vai dobrar por eles, mas isso não tem importância nenhuma. São, apenas, formigas que já não escavam, até ao fundo, a gruta negra da esperança .
      Ao percorrer, diariamente, as ruas habitadas por negros, Charles observa o vazio criado à volta deles, pensa nas suas histórias de vida e em todas as ruas do mundo habitadas pela dor. E seca as lágrimas, na manga do seu casaco coçado, em becos onde o sol não entra, talvez para não tornar  mais visíveis as ruínas e o desespero.  Doía-lhe a fome e o abandono das formigas, sobretudo das mais pequenas, sem colo, sem aniversários para festejar, sem um nariz vermelho de borracha que as fizesse rir, e com o medo a povoar-lhes os dias e as noites. Ele observa o contraste entre luxuosos automóveis que avista ao longe e os casebres dos proprietários brancos, cuja renda exorbitante o tinha levado a trabalhar aos sábados e domingos, para ajudar a mãe a enfrentar aquela despesa. Ah, se este menino fosse branco, ia longe…- desabafa ela, ao saber, pelas vizinhas, que o filho é admirado e invejado na sua escola. Uma escola degradada e sem material escolar, que a fome crónica ainda não tinha fechado.
      No entanto, o terrível convite repete-se e Charles sabe que os gangs não perdoam. Um dia, o tiro parte detrás de um carro estacionado, no outro lado da rua. O jovem negro do gueto atira-se ao chão, e a vitrina suja de uma montra desaba, em pedaços, sobre o seu corpo. Ao vê-lo entrar em casa, ensanguentado, a mãe sobressalta-se, solta um grito, mas logo entende o brilho intenso daqueles olhos claros. Ele é uma formiga sem infância, mas nascera com asas e não as tinha perdido. Sabe que o seu filho tem um sonho que nada nem ninguém pode estilhaçar. Um sonho que o torna incansavelmente sobrevivente. E se tivesse de o escrever com o próprio sangue, não hesitaria em o fazer. O sonho amadurece no seu coração e circula como seiva, por todo o seu corpo, com a liberdade do oleiro que molda o barro com as suas mãos.
     Pouco depois, Charles aprende a tocar bateria e viola e vai ao encontro de um grupo de jovens de todas as raças. Há sementes e água. E essa água corre, transformando tudo à sua passagem. O jovem negro do gueto, que lê muito e gosta de escrever, começa a trabalhar na redacção de uma revista, elo de ligação entre sementes de várias cores que frutificam em toda a parte e dão colo e pão a formigas sem infância, de mãos roxas e gretadas, ventre inchado e chagas nos pés, que vivem na rua, que não têm sabão para lavar a cara e para quem o seu próprio nome é uma coisa estranha para os seus ouvidos desabituados. São, apenas, formigas. Formigas pequenas, com os dias todos iguais. E, por vezes, as estrelas reflectem-se em olhos negros que interrogam os homens. Ele bem o sabe e sonha levar, a todas, a água que tudo transforma e mata todas as sedes.
     Certa noite, o jovem negro do gueto, que fala pausadamente, que tem paixão pela ciência, que gosta de tirar fotografias e de compor música, que se destaca pelo que diz e, sobretudo, pelos seus silêncios, adormece, feliz, na sua enxerga de palha. Em breve, iria a Roma representar o grupo de jovens de todas as raças que sonha, no meio dos escombros, um mundo unido. Os seus amigos já tinham conseguido recolher o dinheiro necessário para a viagem. E aquela expectativa veste-lhe os dias, com o júbilo da esperança e o sabor do resgate.
     Uma semana depois, no gueto negro, o espanto toma conta de uma multidão arquejante e incrédula, cujas lágrimas desabam sobre a urna que jovens brancos levam aos ombros, acompanhada por um formigueiro de crianças negras que choram e estão perplexas, por nunca terem visto brancos no gueto e por olharem as suas mãos pequenas e não acreditarem na perda, e por olharem as suas mãos pequenas e não acreditarem na escuridão daquela ausência. Porém, Charles tinha sido atingido a tiro, ao regressar da escola. Eram duas horas da tarde. Subira os degraus da escada, como era habitual, mas já não pôde abrir a porta de sua casa. Uma rajada, disparada atrás de si, atingira-o, mortalmente.



* Texto inspirado na vida de Charles Derrick Moats 


    
Leia sobre Charles Moats em mais informações.[ Abaixo]

25 de março de 2012

Ah, se os netos pudessem crescer como o trigo que amadurecia, festivamente, entre papoilas…

OS GIGANTES DA PLANÍCIE



                                                                                                             Maria João Oliveira

      Pensativa, Rosa Maria colocou o tecido de chita na mira da agulha e pedalou na sua máquina de costura, durante alguns minutos. De súbito, as cataratas e as dores nas costas fizeram saltar uma lágrima que lhe caiu no avental de quadrados azuis. A costura sempre fora o seu “governo”, mas estava sem reforma, por nunca ter descontado para a Segurança Social.  E agora? O que podia ela fazer, com dois netos a seu cargo e uma modesta pensão de sobrevivência do seu saudoso João? Sentia-se como ramo separado da videira. Ah, se os netos pudessem crescer como o trigo que amadurecia, festivamente, entre papoilas…  Cortou, nervosamente, a linha com os dentes e, através da janela, fixou o olhar no campo de girassóis que se estendia na imensidão criadora da planície e que brilhava ao sol como mancha de ouro. Uma planície que sempre fora o palco do seu destino. E ainda vivia em comunhão com ela. A sua forte ligação à terra levava, por vezes, a sua voz, pelos campos fora, a ondular como as searas. Apesar de tudo, cantava ainda. E quando o sol desaparecia, aos poucos, na linha do horizonte, numa apoteose de fogo, Rosa Maria, fascinada, chorava,  porque um pôr-do-sol alentejano, às vezes, também dói. Graças àquela beleza que não envelhecia nem morria, os seus olhos nunca tiveram a secura dos restolhos. Aquela secura que a fome, às vezes, provocava na alma, e impedia as pessoas de sentirem as cores, os cheiros, os sons, o pulsar do coração da terra, o pulsar do coração daquele “oceano de terra”, como dizia Torga. Enquanto enfiava, penosamente, a agulha no buraco de um botão, Rosa Maria tentava atar os fios soltos da sua infância. E viu-se deitada dentro de um caixote, à sombra de uma azinheira, enquanto o pai, que nunca chegou a maioral, guardava as ovelhas do patrão, com o cão sempre atento e de olhos postos no dono, e o irmão mais velho, que não queria ser ajuda, nem gostava de ir aos mandados, investia de mãos na cintura, contra um arbusto que se transformara, de repente, num touro bravo. Mais tarde, ela já se apercebia da graça  das cegonhas nos postes da Rede Eléctrica e não se cansava de contemplar os borregos pretos ou branquinhos como a neve,  a cabriolar, ou de joelhos no chão e o rabito a acenar para as mães que os mimavam com marradinhas e lambidelas, ao som das cegarregas que ela tanto gostava de ouvir.  Entretanto, a sua mãe Emília, bonita e corada como uma romã, ia aos cardos e aos agriões, para fazer uma sopa de couratos, acompanhada de pão duro e azeitonas do ano anterior, que a D. Felismina gostava de dar aos pobres, com largas fatias de toucinho amarelado que já não tinha lugar nas suas arcas bem abastecidas de carne salgada. Duas vezes por ano, os seus criados levavam, num cabanejo, a casa dos mais pobres, uma panela de cachola e assadura. “Graças àquela Senhora”, não tinham de comer sempre capacho ou uma açorda solteira de manhã e outra à noite. “Em cima” da sopa, comiam, quase sempre, fatias de faneco  bem untadas de toucinho e, às vezes, tinham  migas  e chouriço assado, aos domingos, com azeitonas arretalhadas.
      Gostava das histórias que o avô lhe contava, aos serões, junto da lareira, de abanico na mão, quando o patrão lhe dava uns dias de férias, pelo Natal. E jamais esqueceu a história dos “gigantes da montanha e dos anões da planície”, que ele lhe contava e interpretava à sua maneira, enquanto a ceia chiava na tigela de fogo, bem assente na trempe em brasa. A avó enfiava a agulha, metia o ovo no calcanhar da meia e ficava também a ouvi-lo:
          “Era uma vez uma família de gigantes. (...) E depois o que fez a menina “giganta” que era curiosa como eu? – perguntava ela ao avô.
      – Lançou dentro do avental, que cobria o campo quase todo, os jornaleiros, a charrua e os cavalos, julgando que eram lindos brinquedos. O  pai gigante franziu as sobrancelhas e disse à menina que não eram brinquedos, mas sim pessoas e coisas que deviam ser amadas e respeitadas. – E a menina “giganta”,  teve de meter tudo, de novo, no avental e deixar os brinquedos onde os descobriu,  porque “os gigantes da montanha morreriam de fome, se os anões da planície deixassem de lavrar a terra e de semear o trigo”.
         Ao lembrar esta história, Rosa Maria respirou fundo, lambeu a linha, meteu a ponta   entre os dentes e sentiu cair outra lágrima sobre o avental de quadrados azuis.
      - Por isso, é que tu foste preso e torturado pela Pide,  meu  avô. E, na chaminé onde  me contavas histórias, suicidaste-te, quando te viste obrigado a  deixar a malhada, sem reforma, tolhido pelo reumático e pela indiferença do patrão…-  murmurou, deixando cair o dedal  que tinha no dedo médio da mão direita.  – Tu achavas que nós todos estávamos metidos num grande avental. O avental dos patrões, onde trabalhávamos de sol a sol e nos tornávamos “anões”, sem o sabermos… Tinhas razão, avô. E hoje, sinto-me dentro dum  avental parecido, sabes? Morreste-me, avô, e mal sabias tu que o teu neto, que brincava às touradas, na herdade, viria a morrer também, ao pisar uma mina, na guerra do Ultramar… Mais tarde, partiu o João, o meu companheiro de sempre, e a  Rita… a minha filha… morta naquele acidente, com o Chico, pai dos meus netos.  Foram todos… todos… Se não fossem as crianças…
      Naquele momento, olhou, sobressaltada, o relógio antigo que tinha numa parede da “casa da costura”. - Ah, não era tarde, afinal. A Joana e o João ainda estavam na escola da aldeia, embora não faltasse muito para eles assomarem, com o habitual alvoroço, ao postigo da sua porta de madeira, já carcomida pelo tempo. E, enquanto os pássaros chilreavam à volta da sua casa caiada de branco, continuou a atar os fios soltos da sua infância. Gostava de ver o pai, na hora do acarro, à sombra de um sobreiro, a talhar madeira, a fazer badalos ou a trabalhar um tarro em cortiça. Às vezes, ele sonhava com panelas cheias de libras de ouro, para lá da Ribeira da Velha, onde a mãe colhia os agriões para a sopa. Porém, ao acordar, tinha, apenas, o cajado à espera, o vento suão, os safões, a  samarra,  o suor  que lhe fazia arder os olhos e que ele limpava com as costas da mão.  Ao longe, ela ouvia o canto das mulheres que ceifavam as searas. Eram as “heroínas das planíceis e das charnecas”, como dizia o avô, que gostava de ler e lhe dizia que ela tinha olhos lindos, da cor daquela terra única, e cabelos loiros como as searas. Nos raros momentos de folga, ele aparecia e gostava de a  ver correr, à volta das antas e dos  menires da herdade.  Tinha cabelos de prata, as rugas dos oitenta anos e dores reumáticas nos joelhos, mas o seu sorriso não perdia o brilho da ternura. – Ah, avô, como tu gostavas que eu apanhasse  bolêtas,  p´ra ti! Um dia, ficaste triste, quando o meu pai me disse:
        -  “Só podes comer uma sardinha inteira, quando  a tua cabeça chegar à cantareira da  chaminé” … - Pois  é, avô, mas tu sabes que ele disse aquilo com ar de quem pedia desculpa, reparaste? E, no fundo, sabias que tinha de ser assim…
        - “Vai ver como é que está a boneca que deixaste no quintal” – disse-me, um dia, a mãe. E eu chorei muito, ao ver a minha boneca de cartão, desfeita pela chuva, lembras-te? Uma semana depois, alguém viu, na tua malhada, uma grande boneca de cartão que tu compraste numa feira. E quando o meu pai a trouxe e a pôs nos meus braços, eu senti-me como se tivesse o mundo inteiro no meu colo.
      De súbito, Rosa Maria ouviu bater à porta. Parecia o jeito de bater da sua vizinha Ermelinda, que era analfabeta, andava desmorecida, há muito, e com dores nas cruzes, mas  tinha um “coração de ouro” .
      - Comadre,  ê sei q´andas  atazanada, mas trago-te pêxe do rio, ovos da minha gadeza, e tomates e çabolas  p´rá  tu´ ceia e  dos tês gaiatos…
      Rosa Maria não se sentia capaz de pedir coisa alguma, aos seus vizinhos, mas a solidariedade batia-lhe à porta, com frequência. - E ainda dizem que nas aldeias já nada se sabe do vizinho, mas sim o que se passa no mundo! A sua aldeia não era assim – pensava ela, agradecida. O sino ainda mobilizava as pessoas. O seu rio não estava asfixiado de lixo. E a escola ainda não tinha fechado, graças à persistência da Professora Joana, que não era muito avessa à aldeia global, mas que defendia, com todas as suas forças, os valores que orientavam aquela aldeia, embora não pudesse evitar o desemprego e as pensões de reforma que atormentavam os idosos.
      - Já  na  havio as recêtas, a renda da casa tá atrasada, vejo-me em fezes p´ra pagar  luz e água, mas a  ´nha horta  tamém é tua, Rosa Maria…

11 de março de 2012

Um grupo de militares afectos à Unidade da Guarda Presidencial tinha queimado as cubatas e todos os haveres da população, para ali ser construída a pista de um novo aeroporto

O Não-lugar de Montantu

Habitava o exílio, há muito, e enfrentava ainda as emboscadas da dor, à procura de uma luz na penumbra. A sua casa era uma velha bicicleta que tinha os seus próprios caminhos. Por vezes, levava-o à cubata de mãe Felismina que sorria, ao ouvir o som dos seus passos. Uma cubata que ele tinha erguido, a curta distância de um rio de pontes destruídas por armas, finalmente, silenciadas. Estava cansado de viver ao relento, com mãe Felismina e Runguinha, sua irmã. Um grupo de militares afectos à Unidade da Guarda Presidencial tinha queimado as cubatas e todos os haveres da população, para ali ser construída a pista de um novo aeroporto. Nem as enxergas, nem as cabaças para a água e outras bebidas, nem o almofariz de madeira de mãe Felismina tinham escapado à sanha dos militares. Mas o que mais lhes doeu foi a perda do único retrato de pai Joaquim, caldeireiro ambulante, homem corajoso e destemido na defesa dos mais pobres, que fora vítima de uma emboscada, durante a guerra.
- Montantu, filho, p´ra onde vais?
- P´rá cidade, mãe! Se não for, morremos de fome! Volto p´ró mês que vem…
Ao ouvir aquelas palavras, mãe Felismina ficou em silêncio e apagou-se, mais uma vez, num canto escuro da cubata, com as mãos cruzadas sobre um colo que também tinha embalado Daniel, o filho mais velho, que lhe contava tudo, até desaparecer, para sempre, no negrume da guerra. Na sua alma, latejava um pó acumulado de ilusões baleadas.
- Mãe, eu sei que Montantu lhe faz falta…Desculpa ser tão pequena! Mal posso com água e lenha… estendo mal roupa no capim… Me queria mais alta e velha como a senhora…
- Não diga isso, Runguinha! Deus lhe castiga! Não pôde meninar… e agora… queria ser velha de bengala como eu?! Estou cansada de estar viva, filha… Ah, e julga que pode desobedecer ao tempo? Não há precisão, Runguinha. Ele toma conta…
Montantu Luisão escutava-as, em silêncio, com o coração a bater-lhe violentamente, no pescoço. Os seus olhos negros pareciam duas brasas acesas. Ergueu-se, calçou apressadamente as sandálias e deu alguns passos em direcção à porta. Durante breves minutos, contemplou o rio, lá em baixo, como quem se despede, mas começou a caminhar em sua direcção. Transpirava, abrasado de calor.
- Juro que esta magreza de vida vai acabar! - murmurou. – Ah, Daniel… como tu e o Alfredo… me fazem falta!...
De súbito, estremeceu. De um bolso dos seus calções, caíra um pequeno caderno de capa preta que se afundou na areia quente da tarde. De imediato, dobrou os joelhos e ergueu-o, devagar, como se tivesse, nas suas mãos, um objecto sagrado. Apertou-o de encontro ao peito e voltou a colocá-lo no bolso. Ainda em sobressalto, olhou a linha do horizonte, como se ele tivesse paredes e precisasse de encostar o seu corpo. O sonho enchia-lhe os ouvidos de gritos de aves e rumor de ondas. Aspirava, como se fosse pela última vez, o cheiro quente do pequeno rio e aquele silêncio universal, cortado, de vez em quando, pelo canto de uma ave. Naquele momento, Runguinha correu para ele e abraçou-
-o pela cintura.
- Melhor não ir, Montantu…
O jovem mulato sorriu e lembrou-se dos tempos em que a sua irmã caçula lhe pedia que apanhasse estrelas para ela. Pensativo, acariciou-lhe os cabelos crespos e negros, mas ao colocar-lhe as mãos nos ombros, sentiu que uma ferida se abria, dentro dele, e mal reteve um grito. Os ossos roçavam-lhe a pele, mais do que nunca, sob o vestido azul de chita.
- Tem que ser, Runguinha…
Fustigado pelo sol quente e vermelho de África, Montantu Luisão partiu, na sua velha bicicleta, rumo aos parques sombrios da grande cidade, onde encontrava o pão que o sujava por dentro e o atirava, uma vez mais, para um exílio, em que se sentia fracturado e objectivado. Carregava o não - lugar desde a infância e a solidão tinha dedos metálicos, à volta do seu pescoço. Dedos que, no entanto, o empurravam para a busca de um lugar onde o seu ser estilhaçado pudesse libertar-se daquele sistema de morte e alcançar a “civilização da ternura”, de que lhe falava o missionário Alfredo, raptado pelos rebeldes, quando levava alimentos, para uma povoação faminta, no interior do mato. Tinha saudades do seu abraço, um abraço que lhe abastecia todos os vazios. E também daquele sorriso que fazia nascer a vida e florescer a esperança. Jamais podia esquecer as missas que ele celebrava, às escondidas, sob a abóbada das estrelas, no mato iluminado por archotes. Quando a notícia da sua morte correu célere pelas montanhas, sentiu-se culpado de ainda não ter pisado uma mina. Se soltasse, de repente, o grito que tinha dentro de si, encheria o mundo.
Um dia, também ele foi raptado, em plena estrada de terra batida. Sentia ainda o sangue quente do missionário Sílvio Fiorini que fez do seu corpo escudo, para lhe salvar a vida. Alguns meses depois, o seu irmão mais velho era assassinado. Pouparam a vida de mãe Felismina e Runguinha, mas as sementes e as ferramentas foram pilhadas. E colocaram, no ombro de Montantu, uma arma, cujo peso era uma espécie de ligadura que ainda o comprimia por dentro.
Mais do que nunca, sentia a urgência de partir. Porém, baloiçava entre dois pólos: a terra e o mar. Amava aquela terra vermelha e o cheiro dela, mas estava cansado de habitar, na sua própria pátria, um exílio permanente. Achava que o seu jovem país não era “inviável”, como muitos diziam. Contudo, aquela urgência corria dentro dele como uma hemorragia que já não podia deter. Sabia que aquele sonho já tinha assassinado milhares de africanos, mas comprou um lugar numa embarcação e partiu rumo à Europa.

Cheirava, finalmente, a mar. Porém, Montantu Luisão sentia a angústia como uma abóbada escura por cima dele, a separá-lo das cores, dos sons, dos cheiros de África… Olhava o céu alto e mudo, como se procurasse uma resposta. O sol brilhava sobre as ondas de um mar nervoso, inquieto, espicaçado pelo vento. As tábuas do barco rangiam debaixo dos pés e, à sua volta, corpos esqueléticos de homens, mulheres e crianças, disputavam o pequeno espaço do convés. Ao olhar aqueles rostos parados, esculpidos por longos anos de guerra, paciência e fome, deixou escapar uma lágrima.
Naquele momento, uma menina mulata, de vestido amarelo e olhos claros, ergueu-se, avançou para ele e ofereceu-lhe, em silêncio, um pequeno ramo de flores brancas, já murchas. Uma trança comprida aparecia debaixo de um lencinho vermelho de bolas pretas. O seu sorriso tinha a frescura de uma nascente de água e a beleza da inocência.
- São “beijos de mulata”… - esclareceu a mãe da criança, com ar de quem pede desculpa. Parecia que aquelas flores tinham nascido de uma dor calada que todos queriam esquecer. Por isso, se escondiam dela, tapavam os ouvidos, fechavam os olhos…
Movido por um assomo de afecto, Montantu dobrou os joelhos, tomou o rosto da menina entre as mãos e, em seguida, abraçou-a sem conseguir articular palavra. Apenas se ouviam as ondas a bater no casco da embarcação. Olhou à sua volta e apercebeu-se de que os seus companheiros de viagem sorriam, como se, naquele momento, o cheiro do suor e da angústia se tivesse diluído nas águas.
Naquela noite, conseguiu dormir algumas horas, e, ao acordar, reparou que o mar estava sereno, com a lua a espreitar através das nuvens. Porém, sentia, cada vez mais, a fome e a sede da distância. Lembrava-se da tristeza de mãe Felismina, do doce sorriso de Runguinha, dos amigos que andavam em muletas e daqueles que rasgavam as mãos, na dureza das minas e ficavam sepultados nos buracos, para sempre. Os seus olhos negros tinham voos de pássaro aflito. Levou a mão ao bolso, para sentir a textura acolhedora do caderno de capa preta, e para que a esperança entrasse na sua alma e já não saísse... Um dia, havia de voltar. Mais uma vez, abriu o caderno e, com o som do mar como pano de fundo, começou a ler, em voz baixa, a primeira página de um livro que não chegou a ser concluído:

Um cheiro que não se pode descrever, nunca se esquece. Entranha-se em nós para o resto da vida. E o teu cheiro, Mãe - África, acompanha-me e suaviza as minhas dores. Em ti, escuto o canto magoado da sobrevivência. És fogo que me atrai e transforma. Dás-me

as asas de que preciso, para subir, bem alto, por cima do vazio que me cortava, lá longe, como fio de navalha.
Os teus meninos pisam minas, ardem de febre e morrem de meningite, malária, diarreia. Os teus meninos têm a barriga inchada e os olhos fundos. O teu chão tem milhares de cruzes e milhares de corpos incompletos que gostavam de dançar Kizomba.
E sei que estás cansada de transformar em lenha as árvores que te davam frutos e sombra, porque não podes pagar o preço exorbitante de uma bilha de gás.
No entanto, agarras-te, com todas as tuas forças, a qualquer possibilidade de recomeço. Quando tens de te refugiar num acampamento, ergues-te e plantas flores, à sua volta. Flores e legumes que os soldados arrancam e levam. E quando, mais uma vez, te deixam de mãos vazias, procuras sementes, de novo…Por isso, quem sente o teu cheiro, não pode mais ignorar a viagem que ainda não fez, o convite do barco, o apelo do mar, o chamamento das tuas feridas…
Há quem pense que não tens asas, que não tens futuro, mas tu amas, Mãe-África! Por isso, transformas os obstáculos em trampolins. E os teus tambores fazem estremecer os mais cépticos. Um dia, poderás fixar os vampiros, nos olhos, e eles acabarão por recuar.

Agora… vou dar uma aula na escola da Missão. Amanhã, continuarei a escrever, para ti, Mãe - África…

Alfredo Rebelo, missionário

- Mas não escreveste mais, meu amigo… - murmurou Montantu, fechando o caderno, com a saudade cravada no peito como lâmina afiada. – No dia seguinte, foste raptado por homens armados...
Naquele instante, sentiu um arrepio, como quem entra numa estranha dimensão, ao ver que o sol se tinha escondido, subitamente. Em poucos minutos, surgiram nuvens carregadas de chuva e ventos ciclónicos. O ar arrefeceu e o mar rugia sedento de vítimas. A embarcação estalava com as investidas das ondas. Todos temiam o excesso de peso. E não tinham equipamentos de sobrevivência. Soltavam gritos, pedidos de socorro, mas só o estrondo das vagas lhes respondia. Já perto da costa, a embarcação afundou-se. E as pessoas morriam afogadas e feridas pelas tábuas desfeitas. Montantu sentiu-se arrastado a uma profundidade de quinze pés, mas, com duas fortes braçadas voltou à superfície. A menina… a menina do vestido amarelo, meu Deus! E o caderno... o…caderno… Deixou-
-se levar pelas vagas, mas, de repente, virou-se de barriga para baixo, tentando nadar para a costa, com todas as forças que lhe restavam. Uma corrente gelada atravessou-lhe o corpo, mas o seu desejo de viver levava-o a suportar, com energia, o intolerável. Pedia socorro, mas tentava libertar-se do pânico, para sobreviver.
De súbito, viu dois botes que vinham em auxílio dos náufragos, mas a boca encheu-se de água e, naquele momento, começou a desfalecer. Chocou contra qualquer coisa que já não identificou, mas ainda se apercebeu que o retiravam da água. Perdeu os sentidos, naquele instante. Alguns minutos depois, abriu os olhos.
- AL…ALFREDO!... Ah, o teu abraço! Estou… morto, não é verdade? Vieste… buscar-me, meu amigo!
- Não, Montantu Luisão! Nós estamos vivos, acredita! E não adoeceste! Como é possível?! Estou no Centro de Acolhimento, de Lampedusa, há muito. Está sobrelotado… - disse Alfredo, cabisbaixo, apreensivo, com os olhos verdes húmidos. - Vá, amigo, estás a tremer de frio. Vamos mudar de roupa.
Com o auxílio de um jovem tunisiano que já o tinha ajudado a salvar inúmeras vidas, Alfredo vestiu-lhe, rapidamente, um quente fato de treino, calçou-lhe uns ténis, secou-lhe o cabelo com uma toalha…
- E agora vamos ao refeitório… -disse, já em terra firme.
- Não… não posso… acreditar! Não te mataram?! – E o jovem ergueu-se, apoiando-
-se no ombro do amigo, com a felicidade a brilhar-lhe no rosto magro, de pele curtida pelo sol de África. - Não te mataram?! – repetia, atónito, cheio de júbilo, com a brisa do mar a sacudir-lhe os cabelos.
- Foi um boato! Os raptores acharam que eu tinha jeito para tratar dos seus feridos.-
- respondeu Alfredo, com um sorriso que lhe iluminou o rosto comprido de barba grisalha. – Só me libertaram, quando a guerra acabou.
- Tenho medo de ser deportado… Não quero perder-te, outra vez…
- Não vai ser fácil, mas confia em mim, amigo. Aqui, há turistas a tomar banhos de sol e cadáveres a boiar, à espera da polícia… As pessoas têm receio de falar. E há muitos imigrantes que são expulsos…Mas tu vais estar na ilha, só uns dias. Hás-de conseguir, amigo! Dobraste o cabo, terás a Índia! Vou contigo, mas ainda volto, porque há muitos naufrágios por aqui…
Naquele momento, o jovem mulato respirou fundo e, com um aperto na garganta, olhou o horizonte, no exacto ponto em que o mar se une ao céu. – Quando voltaria a abraçar mãe Felismina e Runguinha?
- Um dia, voltaremos à nossa Mãe - África, Montantu… Um cheiro que não se pode descrever, nunca se esquece…
- O mar levou-me o teu caderno de capa preta, sabes?
- O meu caderno?! Não entendo!
- Fui à Missão, onde me ensinaste a gostar de livros. Eles destruíram tudo, mas o teu caderno de capa preta estava lá, intacto, no meio dos escombros…
- Ah, obrigado, meu amigo! Não sabia que o tinhas guardado!... – exclamou, com um sorriso que cintilou como um clarão, no azul da ilha. E fixou o olhar, num mar emudecido como um campo de batalha depois da luta.
Já a noite descia sobre Lampedusa, quando Montantu, deitado numa enxerga, e com o rosto vincado pela fadiga, conseguiu fazer a terrível pergunta:
- Salvaram … uma menina de vestido amarelo?
- Foram resgatados, com vida, vinte e um dos cem ocupantes do barco. Amigo, são todos adultos…
- Ah… Ela era linda! Ofereceu-me flores brancas…
Alfredo abraçou-o em silêncio. E, no reflexo dos seus olhos, Montantu sentiu-se, finalmente, resgatado do exílio.

3 de dezembro de 2011

Ao Fado, Património Cultural Imaterial da Humanidade-Aos fadistas, músicos, poetas e compositores do meu País

                                                  O VINHO DA BODA



                                                                                                 Maria João Oliveira



      Paciente como as árvores, o sonho desabrochava em todos os poros da sua alma. Perseguia a traça da rotina, o anoitecer da esperança na sala de espera, os tentáculos subterrâneos do Impossível. Ele era uma vela teimosa que logo acendia todas aquelas que já se tinham apagado dentro dela. Ele era o vinho da boda. Vinho que ela escondera no seu quarto, dentro de uma caixa atada com uma larga fita vermelha. Ele era o xaile preto que lhe escorregava pelos ombros e lhe provocava arrepios na espinha.
No entanto, vivia momentos em que tinha medo. Medo de não conseguir sobrevoar o caos, por mais tempo. Medo de viver como um mecanismo ao qual a paralisia da irmã tivesse dado corda. Sentia-se só, em pleno naufrágio. E, de vez em quando, entrava no silêncio de uma igreja, à procura de sentido, porque tudo se suporta, quando a vida o tem. Vestia de preto, atava os cabelos grisalhos com uma fita vermelha de seda e usava sandálias de couro com aplicações de pedras brilhantes, nuns pés que já tinham trilhado um longo e penoso caminho, dentro de casa. Gostava de ganhar um campeonato no coração da irmã, deficiente motora, mas sentia que o seu esforço tinha caído numa espécie de arquivo morto. Por isso, perguntava às pessoas amigas que as visitavam, se a Nina estaria contente com o seu apoio. Não sabia se lhe estava a dar o melhor de si mesma. Amava-a muito e tinha prometido aos pais, no leito de morte, que estaria sempre a seu lado. Fechou, portanto, o seu sonho, dentro de uma caixa atada com uma larga fita vermelha. E era exímia na arte de sorrir, de fazer o seu bolo de maçã preferido, de movimentar a sua cadeira de rodas, sem derrubar qualquer objecto que estivesse por perto. Porém, só conseguia arrancar do jardim a beleza de uma flor, quando a irmã lhe pedia uma rosa, com alguma insistência. E acabava por escolher uma rosa vermelha de veludo raro. Pegava numa tesoura, seguia a haste até ao primeiro ramo e cortava-a quase como quem corta o próprio pulso. Amava-
-as demais para as mutilar e ver morrer, aos poucos, dentro de uma fria jarra de vidro.
Por vezes, quando a irmã já dormia, serenamente, na sua cama segura e confortável, e o silêncio tomava conta da casa e das ruas iluminadas da vila, colocava auscultadores nos ouvidos e ateava o sonho, na voz de Amália.
- Mas onde é que já se viu?! Uma mulher de cabelos brancos com auscultadores nos ouvidos e janela acesa até altas horas! E põe flores artificiais em casa com tantas que tem  no jardim!... –  criticava a vizinha do primeiro andar, assomadiça a portas e janelas, com os seus dentes de roedora, sempre pronta a traçar o que não entendia, a abrir galerias subterrâneas como toupeira em chão alheio. E quem tem alma de toupeira toca sempre nas raízes.
     Havia noites em que Gigi entrava na sala dos retratos antigos, a preto e branco e, chorando baixinho, ficava a olhar o seu maravilhado sorriso de adolescente que guardava o significado de um instante, de uma hora de felicidade, junto do professor Rodrigo, o seu jovem professor primário, por quem nutria uma paixão secreta. Ele tocava guitarra, gostava de a ouvir cantar e dizia que ela tinha uma voz potente, de timbre e extensão fora do comum. Por isso, a quis levar para uma Casa de Fados lisboeta, mas os pais temiam o seu afastamento. Ela tinha de ser a âncora do barco naufragado da irmã mais nova. E nem a sua rendição evitava que eles seguissem o seu sonho como um cão perdigueiro, na pista do imperceptível.
- Não vais  p´ra  Lisboa, Gigi.  O  que seria da Nina, sem o teu aconchego? 
  Os olhos negros de Gigi, rasgados e cheios de luz, ficaram baços, a partir daquele momento. E escondeu o vinho da boda, no seu quarto, dentro de uma caixa atada com uma larga fita vermelha. À medida que o tempo passava, tentava esquecer-se da parte mais profunda de si, mas nunca deixou de se lembrar de uma bofetada do pai, durante um pequeno-almoço, por não perder a mania de cantar. Aquela lembrança era um rio que não secava nem descansava.
      - Não foi por mal… - dizia-lhe a irmã, já depois de os pais terem partido. – Ele era teu amigo, Gigi, e pensava no nosso futuro, quando investia na empresa e nas propriedades que vamos vender. Não precisas de trabalhar, não é verdade? E tens a Júlia, três vezes por semana, aqui em casa…
Gigi ficava em silêncio, porque o amor impedia-a de responder. Acariciava-lhe as mãos deformadas pela doença e logo se erguia, para lhe dar os medicamentos, mudar a fralda, massajar-lhe as pernas e os pés  imóveis no pedal da cadeira de rodas. E para o silêncio não se tornar pesado, às vezes, dizia:
     - Tens razão, Nina, tens razão, não posso queixar-me…-  E logo abria as janelas, para o sol e o aroma das rosas tomarem conta da casa e expulsarem o cheiro dos desinfectantes e dos medicamentos. Lia histórias para ela, penteava-lhe os cabelos castanhos com fios de prata à mistura, punha no seu colo, um ternurento gato branco de grandes olhos azuis. E as suas mãos de veias salientes, gastas pela dádiva e pelo tempo, continuavam a limpar, a tecer, a cozinhar.
     - Porque te vestes de preto, Gigi? As tuas saias compridas são bonitas, mas porque têm de ser  pretas? E porque andas, quase sempre, com essa fita vermelha?! - perguntavam os amigos, a irmã,  os vizinhos. Gigi respondia, apenas, com um sorriso triste. Há perguntas que geram dentro das pessoas uma grande solidão. 

E assim passaram muitos anos. Anos de anestesia do próprio sonho, sem espaço para a surpresa, a chama, o novo, o espanto. Gigi, como uma borboleta de asas arrancadas, continuava a viver dividida e a divisão é sempre um beco sem saída. Porém, quando ficava só, na sala dos retratos antigos, ela colocava os auscultadores e continuava a seguir um rasto que os outros não podiam ver.
     Um dia, a irmã partiu para sempre. Tinha adormecido, suavemente, na cadeira de rodas, numa tarde de sol. Aquele sol festivo que desaba, como um insulto, em cima de quem chora. A partir daquele dia, Gigi fechou-se num silêncio apático. Apenas o belo gato siamês ou Júlia, a mulher a dias, lhe conseguiam arrancar um sorriso e algumas palavras, de vez em quando.
     Porém, numa bela manhã de Junho, quando o sangue do sacrifício já arrefecia na taça, Gigi ouviu a campainha da porta que dava para o jardim. Ao espreitar através dos vidros da janela, viu um homem alto e magro, de fato preto, camisa azul e cabelo branco a roçar o colarinho. De súbito, soltou um grito abafado e deu um salto para trás, sentindo a surpresa a escorrer da cabeça para o coração. Era ele! Aqueles olhos eram inconfundíveis. - O tempo não passa por olhos que abrigam uma intensa cor azul. – pensou. Mas ela receava, há muito,  que ele se tivesse  apagado como uma vela, sob o céu azul da sua adolescência. Institivamente, soltou os cabelos brancos sobre os ombros, ainda esbeltos, e sentiu-se impelida para a porta.
     - Oh, professor Rodrigo! – E ambos festejaram, abraçados, aquele momento. Gigi emergia de um longo naufrágio, a escorrer água e algas por todo o corpo. E Rodrigo apercebeu-se , nos olhos negros dela, de que o velho sonho ainda lá estava, forte, indomável, indestrutível.
Naquele momento, entraram na marquise, algumas pétalas de rosa e folhas secas do jardim, como se quisessem viver, com eles, aquele reencontro. No peitoril da janela, um pássaro cantou ao sol daquele instante. O aroma das flores invadiu a casa e tocou-os, entrando em todos os poros das suas almas.
     - Soube da Nina… Encontrei um primo teu, em Lisboa. E ele disse-me que ela… -
     - Sim… Não foi fácil…
    O tempo tinha marcado, com muitas rugas, o rosto do velho  professor,  mas o sorriso tinha a mesma doçura. Nos seus olhos azuis, brilhava a chama da sua condição de sonhador. Gigi reparou, com uma lágrima no canto do olho, que era a mesma chama de há quarenta anos atrás. E levou-o pela mão, até ao seu quarto. Intrigado e indeciso, Rodrigo entrou, enquanto ela subia o estore e fechava a cortina de uma larga janela que dava para uma rua quase deserta, onde ecoava o pregão de um vendedor de lotaria.
      - Ah, o vermelho da paixão  e o negro… o negro… - murmurou ele, olhando um espelho que reflectia um pequeno  sofá de veludo vermelho, com um candeeiro negro de pé alto, ao lado.
      - E só o professor sabe que o negro do fado não é o negro do luto… - disse ela, com um profundo suspiro de alívio.
           Em seguida, abriu um armário envidraçado, de cortinas estampadas de flores e retirou uma caixa atada com uma larga fita vermelha. Com o coração em alvoroço, depositou-a nas mãos do professor, como se fosse um objecto sagrado. Lá fora, os pássaros cantavam ainda e, na casa, ouviam-se as doze badaladas do meio-dia, num relógio de pesos com carrilhão. Da cozinha, vinha um aroma de pão saído do forno.
     - Ah, parece que foi ontem! – exclamou  o velho professor,  sentando-se na cama, com a caixa sobre os  joelhos,  a secar a testa com um lenço e com a emoção à flor da pele.
     - Abra-a, professor. Hoje, quero sentir na pele a prenda que me deu, quando fiz quinze anos…   - pediu Gigi, com os seus grandes olhos negros gaiatamente abertos, e a ajeitar  a sua saia preta de cintura alta, sobre a colcha vermelha da cama de ferro. Uma saia que lhe alongava as pernas e contrastava com a sua blusa de linho, branca, justa e de mangas enroladas.
     - Ah, que belo! -  murmurou ele, tirando da caixa um sonho teimosamente vivo, o vinho da boda, um vinho sedoso, brilhante, transparente. E, naquele momento, olharam-se profundamente nos olhos, em silêncio, saciando uma sede de séculos. Estavam tão próximos que a respiração de ambos se confundia. Por fim, o velho professor ergueu-se e envolveu Gigi no xaile negro de seda que estava, há quarenta anos, numa caixa atada com uma larga fita vermelha.
     -  Gigi, canta! Canta  o “Povo que lavas no rio”, como naquele tempo!
Ela hesitou. Júlia estava na cozinha a preparar o almoço. E o que diria a vizinha do primeiro andar?
     - Canta, Gigi! – Já não se tratava de um pedido, mas sim de uma ordem.
De mãos trémulas, à procura de apoio, ela aproximou-se da cómoda dos retratos antigos que tinha uma jarra de rosas vermelhas artificiais, sobre uma toalha de renda. Encostou-se, um pouco, ao móvel, respirou fundo e, na penumbra do quarto, começou a cantar, aninhada no xaile negro. A voz ergueu-se, poderosa, como ave de longo curso e um arrepio instalou-se nos seus corpos. Cantou tão intensamente que ambos choraram. Cantou, dizendo tudo o que não se pode exprimir por palavras. E o professor, de pé, ficou por dentro daquela voz, durante alguns momentos, como se ela cantasse ainda. Por fim, aperceberam-se de que Júlia estava à porta do quarto, com o gato a roçar nas suas pernas, o avental enrolado na mão, os olhos arregalados de espanto.
    - Não te preocupes, Júlia. Depois falo contigo. Põe três pratos na mesa.
     E a mulher a dias voltou para a cozinha, perguntando a si própria quem seria aquele homem e se a menina Gigi estaria boa da cabeça.
     - Anda, Bambino! Vem p´rá cozinha! – ordenou ao gato, que tinha ficado à porta do quarto, a tentar perceber o que se passava…
     - Gigi, vais cantar com este xaile, numa casa de fados de Lisboa! Este quarto é pequeno demais para a tua voz. Tenho um grupo. Nunca deixei de tocar guitarra portuguesa, sabes? Sempre vivi amarrado às suas cordas. E enviuvei, há pouco. Vim buscar-te, finalmente… - disse o velho professor, estendendo-lhe as mãos, com a felicidade a brilhar-lhe no rosto.
     - Ah, professor, estou velha! Olhe as minhas rugas, as minhas mãos, os meus cabelos brancos…
     - Que importa isso, se a tua voz é a  mesma e o teu  sonho está vivo?! Vivo, Gigi! Lembras-te das rodas que tu fazias, no recreio da escola, com as tuas colegas e tu a cantar o fado, no meio delas? Já era o sonho! Ele escalou montanhas dentro de ti, durante quarenta anos! Tem luz própria. É misterioso como a selva. É feito de desejo. E o desejo não aceita o Impossível. - respondeu com uma  convicção que levou Gigi a sulcar as águas do lago azul dos seus olhos e a beber com ele o vinho da boda.    





6 de novembro de 2011

[Para o Leandro Filipe, Luís Vaz do Carmo e Rafael Pereira, vítimas de bullying, nas escolas]

                                                                               ANDORINHA-DO-MAR

                                                      
                                                                                            Maria João Oliveira


      Acordou em sobressalto. A luz do dia atravessou-lhe o coração como uma adaga afiada. Despachas-te, ou não? Vais chegar atrasado à escola! – gritou a mãe, já irritada.  Da cozinha, vinha um forte cheiro a café que lhe provocou náuseas. A seis mil metros de profundidade, talvez se sentisse melhor, mesmo que também lá encontrasse caçadores e presas.- pensou Francisco, esfregando os olhos claros, doridos de solidão e medo.  Mas por que é que ele não desenvolvia órgãos anormais como alguns seres que por lá andavam? Era assim que eles se defendiam dos predadores, não era? Mas ele não prestava para nada. Todos os dias, lhe diziam isso na escola. E os pais não acreditavam que o corpo lhe doía e que os colegas mais velhos lhe roubavam o material escolar. Mais do que nunca, precisava da lâmpada de Aladino. Conheceu a história na biblioteca da escola, onde se refugiava, sempre que podia, não só porque tinha medo, mas também porque gostava de ler. No entanto, se o Génio da Lâmpada lhe dissesse que tinha direito a um desejo, ele só lhe pediria que o livrasse daquela escola e da falta de um abraço, em casa. Mas ele era um patinho feio. Um dia, tinha de fugir para junto dos patos selvagens que andavam no lago. Sonhava com um local onde ninguém o pudesse encontrar. O patinho feio também preferia viver sozinho num lago deserto. Porém, nas regiões abissais, onde a luz do sol não chega, é que ninguém o podia agredir com pontapés na cabeça. E jamais sentiria mãos pesadas sobre o seu peito, a esmagarem-no, a imobilizarem-no, até perder os sentidos.
      De repente, ao olhar o relógio, algo parou e encravou dentro da sua cabeça. E um medo atroz tomou conta dele. Será que ia ficar, assim, parado, sem conseguir sair de casa?
       Francisco, despacha-te! O café já está frio! Vais chegar atrasado, outra vez!
       Tinha algo de fuga e de despedida., o modo como ele olhou, naquele momento, a sua cama, a mesa de estudo, o computador, a bola de futebol… Lavou, rapidamente, o rosto, bebeu o café já frio, enrolou o cachecol à volta do pescoço e saiu de casa a correr.
      Hoje vais ser pontual, Francisco! -  gritou a mãe, da janela da cozinha.
      Sim, iria ser pontual. Queria chegar a tempo de ver as andorinhas-do-mar, pequenas e frágeis como ele, que andavam sempre a voar e a olhar e não encontravam nada. Mais do que nunca, se identificava com elas. Das aves de rapina é que não tinha pena, porque essas eram fortes e cruéis. E ele já estava cansado de sentir as suas garras no seu pescoço assustado de andorinha-do-mar. Por isso, não queria voltar a ouvir as doze badaladas, no relógio da sala, na noite de 24 de Dezembro. E ainda sentia, na alma, a estalada do irmão mais velho, na noite de Natal do ano anterior. Não conseguia vencer as negras entranhas daquela lembrança. Sabia que o mar também fazia maldades, mas a culpada devia ser a lua. Tinha a certeza de que ele, o mar, apesar de ser forte, não se sentiria vitorioso e seria capaz de o entender,  naquela manhã fria de Dezembro…
      E Francisco corria contra o vento, corria em direcção ao mar, por uma praia deserta, corria com a chuva a bater-lhe no rosto miúdo e afogueado, corria, sem reparar que Tobias, o cão do vizinho, o seguia. Tremia de medo e de frio, mas corria como presa em fuga, corria como quem mede forças com o destino. A certa altura, parou, arquejante. Olhou as nuvens escuras, como quem procura um lugar vago no céu. E atirou-se ao mar. Deixou-se ir à deriva na corrente. A água bateu-lhe nos olhos e uma onda gelada atravessou-lhe o corpo. De súbito, sentiu-se puxado para a superfície. E apercebeu-se de que Tobias o levava para a praia, devolvendo-lhe, assim, o ar e a luz azul da manhã.
      Mais um Natal, não! Porque me foste buscar, meu doido? – murmurou, ofegante, com os olhos cheios de lágrimas. Tobias, também exausto e com o pêlo castanho a espirrar sangue e água, apanhou uma estrela-
-do-mar, colocou-a sobre as costas agitadas do seu amigo e correu, em direcção à vila, em busca de auxílio.
      - O teu Natal vai ser diferente, Francisco. Os teus pais vão acreditar em ti e os professores vão estar atentos…
      Francisco estremeceu como vela perante inesperada brisa, ao ouvir aquela voz terna que o aqueceu por dentro. 
      - Eu não queria outro Natal! Porque vieste?!
      - Tenho estado sempre a teu lado, Francisco.
A criança apercebeu-se de que aquela luminosa criatura esboçou um sorriso triste, embora os seus olhos brilhassem como duas grandes esmeraldas.
      - Desculpa. Eu não queria outro Natal. Só isso.
      Em silêncio, o anjo ajoelhou-se na areia da praia, limpou-lhe as lágrimas e pegou nele ao colo. Francisco aninhou-se, aliviado, nos seus braços. E sentiu-se como um peixe - voador a emergir das águas.  Um raio de luz incidiu, naquele momento, sobre a túnica branca e emprestou um estranho fulgor a uma réstia de esperança que começou a infiltrar-se nos olhos semicerrados de Francisco.


11 de setembro de 2011

Os gritos, a pólvora, o sangue, o olhar da morte, as trincheiras cheias de corpos…

LUZ NO ASFALTO



                                                                                              Maria João Oliveira


        Sentia que estava a perder a capacidade de reconhecer a beleza. E lutava contra os tentáculos dessa perda. Pensava nas árvores que se curam com música de Bach, nos golfinhos que dançam ao som de uma sinfonia de Mozart e em tantas outras criaturas que reconhecem a harmonia… Não seria ela capaz de as imitar? O “belo” já não estava dentro de si? Não sabia o que se passava consigo. Ainda o amava, mas o gancho que ele tinha na mão direita começara a cravar-se na sua alma. E o ruído metálico da cadeira de rodas que ela ouvia, diariamente, há trinta anos, já lhe roubava o espanto que sempre a tinha guiado. Lembrava-se ainda das lágrimas que vira nos olhos do padre que os tinha casado, da emoção de todos, perante o sorriso de Francisco, jovem e belo, na sua jaqueta preta, camisa branca e laço de cetim, como se as suas asas de ave migratória ainda pudessem voar.
        Francisco lutava contra uma guerra infindável que se tinha instalado na sua cabeça. Os  gritos, a pólvora, o sangue, o olhar da morte, as trincheiras cheias de corpos… No entanto, junto do altar, conseguira esquecer o próprio gancho da sua mão direita, amorosamente pousado e aquecido nas mãos da noiva.  Esqueceu a mina que tinha pisado e lhe roubara as pernas. Aquele sorriso de ternura num rosto miúdo, de olhos azuis muito brilhantes e vivos, varria todos os seus medos. Com ela, seria capaz de recomeçar, conduzir o sulco do arado, tecer o impossível com o gancho da sua mão direita…

        Leonor fechou o livro que tinha no colo e a janela do quarto que dava para o quintal. Olhou a tarde rósea e dourada de Outubro, com voos de pombos e flores, ainda mornas, a desfolharem-se ao vento.
        - É implacável este vento… Há sonhos que se desfolham assim…. – murmurou. Uma lágrima caiu no vestido verde. De súbito, estremeceu. As tábuas do soalho rangiam sob a cadeira de rodas. E Francisco apareceu à porta do quarto. Sacudiu os cabelos grisalhos com a mão esquerda e escondeu o gancho no roupão azul. Os seus belos olhos verdes, penetrantes, interrogavam-na, num mudo apelo. Leonor sentiu que Francisco sangrava naquele silêncio denso e rubro, mas ela estava a afundar-se num imenso deserto, com a boca cheia de areia e sem poder soltar um grito.
        - Faz-me falta a tua luz, Leonor. Aquela luz própria que tu tinhas e que me dava asas nesta cadeira. Brilhava sem me cegar…
        - Perdoa, Francisco. Isto  passa. Olha, vamos jantar, sim? Vim à janela, para ver o pôr-
-do-sol – respondeu ela, sem erguer os olhos do livro.
        - Estás cansada e tens razão. Perdoa-me! Mas eu pedi-te, antes de casarmos, para não ficares a meu lado. E a guerra voltou. Tenho pesadelos… Grito… Não te deixo dormir… Se tivesse pernas, acho que iria para a rua, em pânico… Mas isto só acontece nos pesadelos. Sou um “capitão Gancho” que não tem medo de nada. Lembras-te daquela inscrição que Caravaggio tinha na sua faca de bolso? “Onde não há esperança, não há medo”.
        Leonor aproximou-se de Francisco e, de pé, por detrás da cadeira de rodas, abraçou-o como se a morte, em labaredas, os cercasse naquele momento.
        - Perdeste a esperança, Francisco? – perguntou, com um ligeiro tremor na voz..
        - Não, meu amor. Estava a brincar. O pensamento positivo renova as células e reforça o sistema imunológico, vê lá tu, mas…
        - Mas… o quê, Francisco?
        - Não quero ficcionar a realidade. – respondeu, com um largo sorriso – Quero ter os pés bem assentes na terra, ou melhor, as ideias, porque os pés… Bem,  esses…
        - Tu és um leitor omnívoro e isso dá-te um gozo enorme! – interrompeu Leonor , beijando os longos  cabelos  de Francisco.
        - Sem dúvida! É um gozo inexplicável! E… a música dá-me uma sensação de plenitude, de libertação, de leveza… e as ondas do teu corpo… e a tua luz, aquela luz que…
        - Isto passa,  meu amor. É só uma ligeira depressão – disse Leonor, aproximando-se da janela.
        - Não a feches, querida! Cheira a  mosto. Um cheiro quente e doce! Mais uma dádiva da mãe - terra…
        - Passam aqui os cestos das vindimas e há uvas esmagadas no chão, mas… não vamos jantar, Francisco?
        - Fica só mais um bocadinho… Escuta… Gosto de ouvir as badaladas do relógio da aldeia… E aquelas rãs do ribeiro, já reparaste? Devem estar quase a esconder-se no lodo ou debaixo das folhas, mas ainda se fazem ouvir…
        - Sim, parece um coro… A Irmã Teresa, ou seja, a Irmã Sol como tu lhe chamavas,  gostava de as ouvir coaxar, lembras-te? Ah, tenho uma novidade! Ela já regressou do Brasil!
        - Ainda bem! Tenho vontade de a ver. Os braços dela são ramos onde pousam os pássaros feridos. E as mãos, lembras-te? Ela tinha tantas mãos! Mãos para os trabalhos duros que nunca lhe pesavam. Mãos para tocar violino. Mãos para oferecer flores. Mãos para pentear quem já não o pode fazer. Mãos para remendar asas quebradas… - disse Francisco já a sorrir, como se tivesse reencontrado a Luz.
        - É verdade… Aquela freirinha era uma pessoa especial. Nunca percebi como é que ela conseguia ter tempo para tudo!
        - Agora fizeste-me lembrar, nem sei bem porquê, Clarice Lispector:  “se a verdade fosse aquilo que posso entender, terminaria sendo, apenas, uma verdade pequena, do meu tamanho”…
       - A Clarice fascina-me. Faz-me pensar e a sua prosa é pura poesia. – comentou Leonor, acariciando um  gato branco, de olhos azuis, que já os tinha procurado por toda a casa.
        - E há questões que só se resolvem na poesia… - respondeu Francisco, com ar pensativo.
        -  Bem, amanhã, vou à cidade, levantar a tua reforma…
        - Que nem chega para pagar os medicamentos! Se não fosse a tua…
        - Mas sempre conseguimos alimentar o vício da leitura, por exemplo. A casa está cheia de livros, não está? – riu Leonor , pegando no gato ao colo.  -  Olha, meu amor, já anoiteceu e o Condorito está a chamar-nos para jantar. Não o ouves?
       - Sim, e já esteve aí, de barriga para o ar, à espera de mimos…

        No dia seguinte, Leonor levantou-se mais cedo para ir à cidade, no seu velho volkswagen. Os galos saudavam o novo dia. O sol começava a incendiar as copas amarelas das árvores, mas ela não se apercebeu da magia daqueles tons de ouro. E  não viu, nas pétalas das últimas rosas, as gotas de luz que o vento ainda não tinha bebido.  Francisco tentava recuperar de uma longa noite de insónia, mas, ao contrário do que era habitual,  ela não olhou a janela do quarto.   Tinha pressa. Uma devoradora e labiríntica pressa. Perdera o tempo como espaço interior.
       Estacionou numa rua pouco movimentada e dirigiu-se, a pé, à agência bancária. Não lhe apetecia entrar. Já não procurava os amplos horizontes, mas sentia-se murada,  nauseada, na cidade grande. Viu, sentado no passeio, um mendigo invisual, com um cão que segurava, pacientemente, nos dentes, uma caixa de esmolas. Leonor não se solidarizou com eles e entrou, apressadamente, no Banco.
        Momentos depois, saiu e caminhou ao encontro do carro que a aguardava na rua pacata. Ergueu a cabeça e sacudiu, para trás, os longos cabelos ainda castanhos, para sentir, no rosto, a brisa da manhã. De súbito, no passeio mal calcetado, tropeçou numa pedra solta e uma sandália colorida rolou na rua asfaltada. Ao baixar-se, para a apanhar, Leonor ficou quase sem fôlego.
        - Oh, que maravilha!...
        Junto do passeio e à mercê da multidão anónima, brilhava ao sol uma flor branca de cinco pétalas.
        - Que raiz te sustenta nesse duro asfalto? – murmurou, enternecida. Emanava, daquela flor, uma estranha força que, em pleno bulício da cidade, a levou para um silêncio luminoso e redentor. Um silêncio que ela sugou como abelha sedenta de pólen.
        - Eu não convivo com a perda e o fracasso. – pensou, deixando cair uma lágrima. - Francisco é esta flor que rompeu o asfalto.