11 de setembro de 2011

Os gritos, a pólvora, o sangue, o olhar da morte, as trincheiras cheias de corpos…

LUZ NO ASFALTO



                                                                                              Maria João Oliveira


        Sentia que estava a perder a capacidade de reconhecer a beleza. E lutava contra os tentáculos dessa perda. Pensava nas árvores que se curam com música de Bach, nos golfinhos que dançam ao som de uma sinfonia de Mozart e em tantas outras criaturas que reconhecem a harmonia… Não seria ela capaz de as imitar? O “belo” já não estava dentro de si? Não sabia o que se passava consigo. Ainda o amava, mas o gancho que ele tinha na mão direita começara a cravar-se na sua alma. E o ruído metálico da cadeira de rodas que ela ouvia, diariamente, há trinta anos, já lhe roubava o espanto que sempre a tinha guiado. Lembrava-se ainda das lágrimas que vira nos olhos do padre que os tinha casado, da emoção de todos, perante o sorriso de Francisco, jovem e belo, na sua jaqueta preta, camisa branca e laço de cetim, como se as suas asas de ave migratória ainda pudessem voar.
        Francisco lutava contra uma guerra infindável que se tinha instalado na sua cabeça. Os  gritos, a pólvora, o sangue, o olhar da morte, as trincheiras cheias de corpos… No entanto, junto do altar, conseguira esquecer o próprio gancho da sua mão direita, amorosamente pousado e aquecido nas mãos da noiva.  Esqueceu a mina que tinha pisado e lhe roubara as pernas. Aquele sorriso de ternura num rosto miúdo, de olhos azuis muito brilhantes e vivos, varria todos os seus medos. Com ela, seria capaz de recomeçar, conduzir o sulco do arado, tecer o impossível com o gancho da sua mão direita…

        Leonor fechou o livro que tinha no colo e a janela do quarto que dava para o quintal. Olhou a tarde rósea e dourada de Outubro, com voos de pombos e flores, ainda mornas, a desfolharem-se ao vento.
        - É implacável este vento… Há sonhos que se desfolham assim…. – murmurou. Uma lágrima caiu no vestido verde. De súbito, estremeceu. As tábuas do soalho rangiam sob a cadeira de rodas. E Francisco apareceu à porta do quarto. Sacudiu os cabelos grisalhos com a mão esquerda e escondeu o gancho no roupão azul. Os seus belos olhos verdes, penetrantes, interrogavam-na, num mudo apelo. Leonor sentiu que Francisco sangrava naquele silêncio denso e rubro, mas ela estava a afundar-se num imenso deserto, com a boca cheia de areia e sem poder soltar um grito.
        - Faz-me falta a tua luz, Leonor. Aquela luz própria que tu tinhas e que me dava asas nesta cadeira. Brilhava sem me cegar…
        - Perdoa, Francisco. Isto  passa. Olha, vamos jantar, sim? Vim à janela, para ver o pôr-
-do-sol – respondeu ela, sem erguer os olhos do livro.
        - Estás cansada e tens razão. Perdoa-me! Mas eu pedi-te, antes de casarmos, para não ficares a meu lado. E a guerra voltou. Tenho pesadelos… Grito… Não te deixo dormir… Se tivesse pernas, acho que iria para a rua, em pânico… Mas isto só acontece nos pesadelos. Sou um “capitão Gancho” que não tem medo de nada. Lembras-te daquela inscrição que Caravaggio tinha na sua faca de bolso? “Onde não há esperança, não há medo”.
        Leonor aproximou-se de Francisco e, de pé, por detrás da cadeira de rodas, abraçou-o como se a morte, em labaredas, os cercasse naquele momento.
        - Perdeste a esperança, Francisco? – perguntou, com um ligeiro tremor na voz..
        - Não, meu amor. Estava a brincar. O pensamento positivo renova as células e reforça o sistema imunológico, vê lá tu, mas…
        - Mas… o quê, Francisco?
        - Não quero ficcionar a realidade. – respondeu, com um largo sorriso – Quero ter os pés bem assentes na terra, ou melhor, as ideias, porque os pés… Bem,  esses…
        - Tu és um leitor omnívoro e isso dá-te um gozo enorme! – interrompeu Leonor , beijando os longos  cabelos  de Francisco.
        - Sem dúvida! É um gozo inexplicável! E… a música dá-me uma sensação de plenitude, de libertação, de leveza… e as ondas do teu corpo… e a tua luz, aquela luz que…
        - Isto passa,  meu amor. É só uma ligeira depressão – disse Leonor, aproximando-se da janela.
        - Não a feches, querida! Cheira a  mosto. Um cheiro quente e doce! Mais uma dádiva da mãe - terra…
        - Passam aqui os cestos das vindimas e há uvas esmagadas no chão, mas… não vamos jantar, Francisco?
        - Fica só mais um bocadinho… Escuta… Gosto de ouvir as badaladas do relógio da aldeia… E aquelas rãs do ribeiro, já reparaste? Devem estar quase a esconder-se no lodo ou debaixo das folhas, mas ainda se fazem ouvir…
        - Sim, parece um coro… A Irmã Teresa, ou seja, a Irmã Sol como tu lhe chamavas,  gostava de as ouvir coaxar, lembras-te? Ah, tenho uma novidade! Ela já regressou do Brasil!
        - Ainda bem! Tenho vontade de a ver. Os braços dela são ramos onde pousam os pássaros feridos. E as mãos, lembras-te? Ela tinha tantas mãos! Mãos para os trabalhos duros que nunca lhe pesavam. Mãos para tocar violino. Mãos para oferecer flores. Mãos para pentear quem já não o pode fazer. Mãos para remendar asas quebradas… - disse Francisco já a sorrir, como se tivesse reencontrado a Luz.
        - É verdade… Aquela freirinha era uma pessoa especial. Nunca percebi como é que ela conseguia ter tempo para tudo!
        - Agora fizeste-me lembrar, nem sei bem porquê, Clarice Lispector:  “se a verdade fosse aquilo que posso entender, terminaria sendo, apenas, uma verdade pequena, do meu tamanho”…
       - A Clarice fascina-me. Faz-me pensar e a sua prosa é pura poesia. – comentou Leonor, acariciando um  gato branco, de olhos azuis, que já os tinha procurado por toda a casa.
        - E há questões que só se resolvem na poesia… - respondeu Francisco, com ar pensativo.
        -  Bem, amanhã, vou à cidade, levantar a tua reforma…
        - Que nem chega para pagar os medicamentos! Se não fosse a tua…
        - Mas sempre conseguimos alimentar o vício da leitura, por exemplo. A casa está cheia de livros, não está? – riu Leonor , pegando no gato ao colo.  -  Olha, meu amor, já anoiteceu e o Condorito está a chamar-nos para jantar. Não o ouves?
       - Sim, e já esteve aí, de barriga para o ar, à espera de mimos…

        No dia seguinte, Leonor levantou-se mais cedo para ir à cidade, no seu velho volkswagen. Os galos saudavam o novo dia. O sol começava a incendiar as copas amarelas das árvores, mas ela não se apercebeu da magia daqueles tons de ouro. E  não viu, nas pétalas das últimas rosas, as gotas de luz que o vento ainda não tinha bebido.  Francisco tentava recuperar de uma longa noite de insónia, mas, ao contrário do que era habitual,  ela não olhou a janela do quarto.   Tinha pressa. Uma devoradora e labiríntica pressa. Perdera o tempo como espaço interior.
       Estacionou numa rua pouco movimentada e dirigiu-se, a pé, à agência bancária. Não lhe apetecia entrar. Já não procurava os amplos horizontes, mas sentia-se murada,  nauseada, na cidade grande. Viu, sentado no passeio, um mendigo invisual, com um cão que segurava, pacientemente, nos dentes, uma caixa de esmolas. Leonor não se solidarizou com eles e entrou, apressadamente, no Banco.
        Momentos depois, saiu e caminhou ao encontro do carro que a aguardava na rua pacata. Ergueu a cabeça e sacudiu, para trás, os longos cabelos ainda castanhos, para sentir, no rosto, a brisa da manhã. De súbito, no passeio mal calcetado, tropeçou numa pedra solta e uma sandália colorida rolou na rua asfaltada. Ao baixar-se, para a apanhar, Leonor ficou quase sem fôlego.
        - Oh, que maravilha!...
        Junto do passeio e à mercê da multidão anónima, brilhava ao sol uma flor branca de cinco pétalas.
        - Que raiz te sustenta nesse duro asfalto? – murmurou, enternecida. Emanava, daquela flor, uma estranha força que, em pleno bulício da cidade, a levou para um silêncio luminoso e redentor. Um silêncio que ela sugou como abelha sedenta de pólen.
        - Eu não convivo com a perda e o fracasso. – pensou, deixando cair uma lágrima. - Francisco é esta flor que rompeu o asfalto.

7 comentários:

  1. Admiro muito as suas palavras neste conto, porque quando se escreve com esta simplicidade, as palavras ganham um grande significado. Eu deleitei-me muito a ler este conto, porque tem uma mensagem muito forte.

    Manuel Garcia

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  2. Afinal tudo o que nos acontece, não acontece por acaso. Se soubermos estar atentos como a Leonor (e como a Maria João!), nada é pequeno e sem importância. Num ambiente tristonho e sombrio eis que Sol resplandece e transforma tudo: a frágil flor que conseguiu romper o duro asfalto. O Amor vence tudo! Obrigado, Maria João, por esta mensagem de esperança.

    José Cruz

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  3. Este conto alerta-nos para uma das muitas sequelas da guerra, com
    efeitos retardados e duradouros, que mutila corpos e vidas durante
    anos sem fim. Um drama ignorado ou esquecido, que marcou uma geração
    de portugueses e continua, todos os dias, a marcar gentes as mais
    variadas em todo o mundo.
    Mas mais do que o alerta para esse dama, a mensagem do conto é de
    esperança. A esperança que nasce do amor e da fidelidade (que dura
    trinta anos e uma vida inteira). O amor vence os dramas mais
    dolorosos. É essa a raiz que sustem a flor que rompe no asfalto
    Pedro Vaz Patto

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  4. Na beleza da tua escrita o acenar de uma realidade dramática e tão ignorada pela nossa sociedade. Dor e amor lado a lado e este último atenua o sofrimento, bastando para isso estar atento às coias tão simples da vida mas enraizadas profundamente no coração....e a redenção encontra-se aí mesmo....na atenção...na poesia...no "vício" da leitura....no gato que se quer acariciado......enfim...tantas e tantas coisas.
    Obrigado Maria João por este texto tão poético e por isso mesmo tão verdadeiro.

    Carlos Magalhães de Carvalho

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  5. A escrita de Maria João sempre me sensibiliza, como se deixasse meus sentimentos a flor da pele.
    Belvedere

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  6. LUZ NO ASFALTO...mais uma magnífica história de vida com que a Maria João Oliveira nos presenteou. Apesar da singeleza da palavra, ela retrata, com autenticidade extrema, o fruto amargo de uma guerra inclemente, impiedosa e injusta que a muitos atingiu, quebrando sonhos e ilusões. A abnegação sem limites de quem o ladeou, amparada pela chama do amor, mas cujas perspectivas de futuro se foram desvanecendo...até ao encontro com uma singela flor, inexplicavelmente brotada do asfalto e que lhe abriu os horizontes de uma nova esperança.
    Parabéns, Maria João! ADOREI!!!
    Maria Luísa Silva

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  7. A Maria João , com sua escrita - leva-nos a reflexão e a certeza de que a palavra pode e dever ser o gatilho para despertar consciências de que o Mundo é além da pequenez de nossas ilhas.
    Parabéns !
    Filipa Saanan

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