6 de novembro de 2011

[Para o Leandro Filipe, Luís Vaz do Carmo e Rafael Pereira, vítimas de bullying, nas escolas]

                                                                               ANDORINHA-DO-MAR

                                                      
                                                                                            Maria João Oliveira


      Acordou em sobressalto. A luz do dia atravessou-lhe o coração como uma adaga afiada. Despachas-te, ou não? Vais chegar atrasado à escola! – gritou a mãe, já irritada.  Da cozinha, vinha um forte cheiro a café que lhe provocou náuseas. A seis mil metros de profundidade, talvez se sentisse melhor, mesmo que também lá encontrasse caçadores e presas.- pensou Francisco, esfregando os olhos claros, doridos de solidão e medo.  Mas por que é que ele não desenvolvia órgãos anormais como alguns seres que por lá andavam? Era assim que eles se defendiam dos predadores, não era? Mas ele não prestava para nada. Todos os dias, lhe diziam isso na escola. E os pais não acreditavam que o corpo lhe doía e que os colegas mais velhos lhe roubavam o material escolar. Mais do que nunca, precisava da lâmpada de Aladino. Conheceu a história na biblioteca da escola, onde se refugiava, sempre que podia, não só porque tinha medo, mas também porque gostava de ler. No entanto, se o Génio da Lâmpada lhe dissesse que tinha direito a um desejo, ele só lhe pediria que o livrasse daquela escola e da falta de um abraço, em casa. Mas ele era um patinho feio. Um dia, tinha de fugir para junto dos patos selvagens que andavam no lago. Sonhava com um local onde ninguém o pudesse encontrar. O patinho feio também preferia viver sozinho num lago deserto. Porém, nas regiões abissais, onde a luz do sol não chega, é que ninguém o podia agredir com pontapés na cabeça. E jamais sentiria mãos pesadas sobre o seu peito, a esmagarem-no, a imobilizarem-no, até perder os sentidos.
      De repente, ao olhar o relógio, algo parou e encravou dentro da sua cabeça. E um medo atroz tomou conta dele. Será que ia ficar, assim, parado, sem conseguir sair de casa?
       Francisco, despacha-te! O café já está frio! Vais chegar atrasado, outra vez!
       Tinha algo de fuga e de despedida., o modo como ele olhou, naquele momento, a sua cama, a mesa de estudo, o computador, a bola de futebol… Lavou, rapidamente, o rosto, bebeu o café já frio, enrolou o cachecol à volta do pescoço e saiu de casa a correr.
      Hoje vais ser pontual, Francisco! -  gritou a mãe, da janela da cozinha.
      Sim, iria ser pontual. Queria chegar a tempo de ver as andorinhas-do-mar, pequenas e frágeis como ele, que andavam sempre a voar e a olhar e não encontravam nada. Mais do que nunca, se identificava com elas. Das aves de rapina é que não tinha pena, porque essas eram fortes e cruéis. E ele já estava cansado de sentir as suas garras no seu pescoço assustado de andorinha-do-mar. Por isso, não queria voltar a ouvir as doze badaladas, no relógio da sala, na noite de 24 de Dezembro. E ainda sentia, na alma, a estalada do irmão mais velho, na noite de Natal do ano anterior. Não conseguia vencer as negras entranhas daquela lembrança. Sabia que o mar também fazia maldades, mas a culpada devia ser a lua. Tinha a certeza de que ele, o mar, apesar de ser forte, não se sentiria vitorioso e seria capaz de o entender,  naquela manhã fria de Dezembro…
      E Francisco corria contra o vento, corria em direcção ao mar, por uma praia deserta, corria com a chuva a bater-lhe no rosto miúdo e afogueado, corria, sem reparar que Tobias, o cão do vizinho, o seguia. Tremia de medo e de frio, mas corria como presa em fuga, corria como quem mede forças com o destino. A certa altura, parou, arquejante. Olhou as nuvens escuras, como quem procura um lugar vago no céu. E atirou-se ao mar. Deixou-se ir à deriva na corrente. A água bateu-lhe nos olhos e uma onda gelada atravessou-lhe o corpo. De súbito, sentiu-se puxado para a superfície. E apercebeu-se de que Tobias o levava para a praia, devolvendo-lhe, assim, o ar e a luz azul da manhã.
      Mais um Natal, não! Porque me foste buscar, meu doido? – murmurou, ofegante, com os olhos cheios de lágrimas. Tobias, também exausto e com o pêlo castanho a espirrar sangue e água, apanhou uma estrela-
-do-mar, colocou-a sobre as costas agitadas do seu amigo e correu, em direcção à vila, em busca de auxílio.
      - O teu Natal vai ser diferente, Francisco. Os teus pais vão acreditar em ti e os professores vão estar atentos…
      Francisco estremeceu como vela perante inesperada brisa, ao ouvir aquela voz terna que o aqueceu por dentro. 
      - Eu não queria outro Natal! Porque vieste?!
      - Tenho estado sempre a teu lado, Francisco.
A criança apercebeu-se de que aquela luminosa criatura esboçou um sorriso triste, embora os seus olhos brilhassem como duas grandes esmeraldas.
      - Desculpa. Eu não queria outro Natal. Só isso.
      Em silêncio, o anjo ajoelhou-se na areia da praia, limpou-lhe as lágrimas e pegou nele ao colo. Francisco aninhou-se, aliviado, nos seus braços. E sentiu-se como um peixe - voador a emergir das águas.  Um raio de luz incidiu, naquele momento, sobre a túnica branca e emprestou um estranho fulgor a uma réstia de esperança que começou a infiltrar-se nos olhos semicerrados de Francisco.


6 comentários:

  1. Mais um comovente conto da Maria João! Que bela esta prosa que toma conta de ti completamente, te transporta e te faz reviver o que se lê! E no fim sentimo-nos diferentes, para melhor, mais leves, com a alma em festa. Obrigado, Maria João, na expectativa de mais, de muitos mais contos mágicos como este.

    José Cruz
    França

    ResponderExcluir
  2. Adorei o seu conto, Maria João. É mais uma história triste, comovente, mas eivada de realismo. Ele retrata a realidade actual de muitas crianças e jovens, vítimas de abandono doméstico, pela vida agitada e stressante do mundo que os rodeia.Sem apoio familiar e, muitas vezes, vítimas ainda da maldade de colegas que transportam para a escola o que de muito negativo assimilaram em filmes e jogos de violência. E são tomados como alvos preferenciais os de auto-estima mais reduzida, levando-os a decisões extremas e lamentáveis!
    Obrigada, Maria João, por mais esta bela dádiva com que nos presenteou. Fico aguardando pela próxima...

    Maria Luísa Silva

    9 de Novembro de 2011

    ResponderExcluir
  3. Mais uma vez, a Maria João deixa transparecer o seu amor preferencial pelos mais fracos. Neste caso, as crianças vítimas de "bullyng", fenómeno para que começamos a despertar e que assume, por vezes, uma gravidade que chega a provocar o suicídio. Ou a não desejar a festa sempre tão desejada pelas crianças, o Natal...
    Mas, também como é seu hábito, a Maria João não se detem na amargura; ultrapassa a tragédia com a luz da esperança.
    Obrigado por isso, mais uma vez!
    Pedro Vaz Patto

    ResponderExcluir
  4. Que bom ter Maria João de volta . Querida, seus textos sempre me comovem, me encantam. Obrigada mais uma vez pelo prazer que nos proporciona.
    Belvedere

    ResponderExcluir
  5. A poesia com que nos fals de realidades tão presentes no nosso quotidiano deixam-me sem palavras...apenas a saborear os sentimoentos que transparecem, a fidelidade do Tobias..a estrela do mar...afinal apesar da realidade cruel......o amor vence.
    Não desistas de no surpreender com esse teu dom tão particular de denunciares o mal com a harpa da poesia que é a tua escrita.

    Abraço
    Carlos - Leiria

    ResponderExcluir
  6. O tema da violência infantil nas escolas é muito actual,sendo que as crianças são muito sensíveis à violência e são sempre a parte mais fraca. A Maria João conseguiu escrever um texto em que foca o problema do bullying como sendo um problema da sociedade.

    ResponderExcluir