3 de dezembro de 2011

Ao Fado, Património Cultural Imaterial da Humanidade-Aos fadistas, músicos, poetas e compositores do meu País

                                                  O VINHO DA BODA



                                                                                                 Maria João Oliveira



      Paciente como as árvores, o sonho desabrochava em todos os poros da sua alma. Perseguia a traça da rotina, o anoitecer da esperança na sala de espera, os tentáculos subterrâneos do Impossível. Ele era uma vela teimosa que logo acendia todas aquelas que já se tinham apagado dentro dela. Ele era o vinho da boda. Vinho que ela escondera no seu quarto, dentro de uma caixa atada com uma larga fita vermelha. Ele era o xaile preto que lhe escorregava pelos ombros e lhe provocava arrepios na espinha.
No entanto, vivia momentos em que tinha medo. Medo de não conseguir sobrevoar o caos, por mais tempo. Medo de viver como um mecanismo ao qual a paralisia da irmã tivesse dado corda. Sentia-se só, em pleno naufrágio. E, de vez em quando, entrava no silêncio de uma igreja, à procura de sentido, porque tudo se suporta, quando a vida o tem. Vestia de preto, atava os cabelos grisalhos com uma fita vermelha de seda e usava sandálias de couro com aplicações de pedras brilhantes, nuns pés que já tinham trilhado um longo e penoso caminho, dentro de casa. Gostava de ganhar um campeonato no coração da irmã, deficiente motora, mas sentia que o seu esforço tinha caído numa espécie de arquivo morto. Por isso, perguntava às pessoas amigas que as visitavam, se a Nina estaria contente com o seu apoio. Não sabia se lhe estava a dar o melhor de si mesma. Amava-a muito e tinha prometido aos pais, no leito de morte, que estaria sempre a seu lado. Fechou, portanto, o seu sonho, dentro de uma caixa atada com uma larga fita vermelha. E era exímia na arte de sorrir, de fazer o seu bolo de maçã preferido, de movimentar a sua cadeira de rodas, sem derrubar qualquer objecto que estivesse por perto. Porém, só conseguia arrancar do jardim a beleza de uma flor, quando a irmã lhe pedia uma rosa, com alguma insistência. E acabava por escolher uma rosa vermelha de veludo raro. Pegava numa tesoura, seguia a haste até ao primeiro ramo e cortava-a quase como quem corta o próprio pulso. Amava-
-as demais para as mutilar e ver morrer, aos poucos, dentro de uma fria jarra de vidro.
Por vezes, quando a irmã já dormia, serenamente, na sua cama segura e confortável, e o silêncio tomava conta da casa e das ruas iluminadas da vila, colocava auscultadores nos ouvidos e ateava o sonho, na voz de Amália.
- Mas onde é que já se viu?! Uma mulher de cabelos brancos com auscultadores nos ouvidos e janela acesa até altas horas! E põe flores artificiais em casa com tantas que tem  no jardim!... –  criticava a vizinha do primeiro andar, assomadiça a portas e janelas, com os seus dentes de roedora, sempre pronta a traçar o que não entendia, a abrir galerias subterrâneas como toupeira em chão alheio. E quem tem alma de toupeira toca sempre nas raízes.
     Havia noites em que Gigi entrava na sala dos retratos antigos, a preto e branco e, chorando baixinho, ficava a olhar o seu maravilhado sorriso de adolescente que guardava o significado de um instante, de uma hora de felicidade, junto do professor Rodrigo, o seu jovem professor primário, por quem nutria uma paixão secreta. Ele tocava guitarra, gostava de a ouvir cantar e dizia que ela tinha uma voz potente, de timbre e extensão fora do comum. Por isso, a quis levar para uma Casa de Fados lisboeta, mas os pais temiam o seu afastamento. Ela tinha de ser a âncora do barco naufragado da irmã mais nova. E nem a sua rendição evitava que eles seguissem o seu sonho como um cão perdigueiro, na pista do imperceptível.
- Não vais  p´ra  Lisboa, Gigi.  O  que seria da Nina, sem o teu aconchego? 
  Os olhos negros de Gigi, rasgados e cheios de luz, ficaram baços, a partir daquele momento. E escondeu o vinho da boda, no seu quarto, dentro de uma caixa atada com uma larga fita vermelha. À medida que o tempo passava, tentava esquecer-se da parte mais profunda de si, mas nunca deixou de se lembrar de uma bofetada do pai, durante um pequeno-almoço, por não perder a mania de cantar. Aquela lembrança era um rio que não secava nem descansava.
      - Não foi por mal… - dizia-lhe a irmã, já depois de os pais terem partido. – Ele era teu amigo, Gigi, e pensava no nosso futuro, quando investia na empresa e nas propriedades que vamos vender. Não precisas de trabalhar, não é verdade? E tens a Júlia, três vezes por semana, aqui em casa…
Gigi ficava em silêncio, porque o amor impedia-a de responder. Acariciava-lhe as mãos deformadas pela doença e logo se erguia, para lhe dar os medicamentos, mudar a fralda, massajar-lhe as pernas e os pés  imóveis no pedal da cadeira de rodas. E para o silêncio não se tornar pesado, às vezes, dizia:
     - Tens razão, Nina, tens razão, não posso queixar-me…-  E logo abria as janelas, para o sol e o aroma das rosas tomarem conta da casa e expulsarem o cheiro dos desinfectantes e dos medicamentos. Lia histórias para ela, penteava-lhe os cabelos castanhos com fios de prata à mistura, punha no seu colo, um ternurento gato branco de grandes olhos azuis. E as suas mãos de veias salientes, gastas pela dádiva e pelo tempo, continuavam a limpar, a tecer, a cozinhar.
     - Porque te vestes de preto, Gigi? As tuas saias compridas são bonitas, mas porque têm de ser  pretas? E porque andas, quase sempre, com essa fita vermelha?! - perguntavam os amigos, a irmã,  os vizinhos. Gigi respondia, apenas, com um sorriso triste. Há perguntas que geram dentro das pessoas uma grande solidão. 

E assim passaram muitos anos. Anos de anestesia do próprio sonho, sem espaço para a surpresa, a chama, o novo, o espanto. Gigi, como uma borboleta de asas arrancadas, continuava a viver dividida e a divisão é sempre um beco sem saída. Porém, quando ficava só, na sala dos retratos antigos, ela colocava os auscultadores e continuava a seguir um rasto que os outros não podiam ver.
     Um dia, a irmã partiu para sempre. Tinha adormecido, suavemente, na cadeira de rodas, numa tarde de sol. Aquele sol festivo que desaba, como um insulto, em cima de quem chora. A partir daquele dia, Gigi fechou-se num silêncio apático. Apenas o belo gato siamês ou Júlia, a mulher a dias, lhe conseguiam arrancar um sorriso e algumas palavras, de vez em quando.
     Porém, numa bela manhã de Junho, quando o sangue do sacrifício já arrefecia na taça, Gigi ouviu a campainha da porta que dava para o jardim. Ao espreitar através dos vidros da janela, viu um homem alto e magro, de fato preto, camisa azul e cabelo branco a roçar o colarinho. De súbito, soltou um grito abafado e deu um salto para trás, sentindo a surpresa a escorrer da cabeça para o coração. Era ele! Aqueles olhos eram inconfundíveis. - O tempo não passa por olhos que abrigam uma intensa cor azul. – pensou. Mas ela receava, há muito,  que ele se tivesse  apagado como uma vela, sob o céu azul da sua adolescência. Institivamente, soltou os cabelos brancos sobre os ombros, ainda esbeltos, e sentiu-se impelida para a porta.
     - Oh, professor Rodrigo! – E ambos festejaram, abraçados, aquele momento. Gigi emergia de um longo naufrágio, a escorrer água e algas por todo o corpo. E Rodrigo apercebeu-se , nos olhos negros dela, de que o velho sonho ainda lá estava, forte, indomável, indestrutível.
Naquele momento, entraram na marquise, algumas pétalas de rosa e folhas secas do jardim, como se quisessem viver, com eles, aquele reencontro. No peitoril da janela, um pássaro cantou ao sol daquele instante. O aroma das flores invadiu a casa e tocou-os, entrando em todos os poros das suas almas.
     - Soube da Nina… Encontrei um primo teu, em Lisboa. E ele disse-me que ela… -
     - Sim… Não foi fácil…
    O tempo tinha marcado, com muitas rugas, o rosto do velho  professor,  mas o sorriso tinha a mesma doçura. Nos seus olhos azuis, brilhava a chama da sua condição de sonhador. Gigi reparou, com uma lágrima no canto do olho, que era a mesma chama de há quarenta anos atrás. E levou-o pela mão, até ao seu quarto. Intrigado e indeciso, Rodrigo entrou, enquanto ela subia o estore e fechava a cortina de uma larga janela que dava para uma rua quase deserta, onde ecoava o pregão de um vendedor de lotaria.
      - Ah, o vermelho da paixão  e o negro… o negro… - murmurou ele, olhando um espelho que reflectia um pequeno  sofá de veludo vermelho, com um candeeiro negro de pé alto, ao lado.
      - E só o professor sabe que o negro do fado não é o negro do luto… - disse ela, com um profundo suspiro de alívio.
           Em seguida, abriu um armário envidraçado, de cortinas estampadas de flores e retirou uma caixa atada com uma larga fita vermelha. Com o coração em alvoroço, depositou-a nas mãos do professor, como se fosse um objecto sagrado. Lá fora, os pássaros cantavam ainda e, na casa, ouviam-se as doze badaladas do meio-dia, num relógio de pesos com carrilhão. Da cozinha, vinha um aroma de pão saído do forno.
     - Ah, parece que foi ontem! – exclamou  o velho professor,  sentando-se na cama, com a caixa sobre os  joelhos,  a secar a testa com um lenço e com a emoção à flor da pele.
     - Abra-a, professor. Hoje, quero sentir na pele a prenda que me deu, quando fiz quinze anos…   - pediu Gigi, com os seus grandes olhos negros gaiatamente abertos, e a ajeitar  a sua saia preta de cintura alta, sobre a colcha vermelha da cama de ferro. Uma saia que lhe alongava as pernas e contrastava com a sua blusa de linho, branca, justa e de mangas enroladas.
     - Ah, que belo! -  murmurou ele, tirando da caixa um sonho teimosamente vivo, o vinho da boda, um vinho sedoso, brilhante, transparente. E, naquele momento, olharam-se profundamente nos olhos, em silêncio, saciando uma sede de séculos. Estavam tão próximos que a respiração de ambos se confundia. Por fim, o velho professor ergueu-se e envolveu Gigi no xaile negro de seda que estava, há quarenta anos, numa caixa atada com uma larga fita vermelha.
     -  Gigi, canta! Canta  o “Povo que lavas no rio”, como naquele tempo!
Ela hesitou. Júlia estava na cozinha a preparar o almoço. E o que diria a vizinha do primeiro andar?
     - Canta, Gigi! – Já não se tratava de um pedido, mas sim de uma ordem.
De mãos trémulas, à procura de apoio, ela aproximou-se da cómoda dos retratos antigos que tinha uma jarra de rosas vermelhas artificiais, sobre uma toalha de renda. Encostou-se, um pouco, ao móvel, respirou fundo e, na penumbra do quarto, começou a cantar, aninhada no xaile negro. A voz ergueu-se, poderosa, como ave de longo curso e um arrepio instalou-se nos seus corpos. Cantou tão intensamente que ambos choraram. Cantou, dizendo tudo o que não se pode exprimir por palavras. E o professor, de pé, ficou por dentro daquela voz, durante alguns momentos, como se ela cantasse ainda. Por fim, aperceberam-se de que Júlia estava à porta do quarto, com o gato a roçar nas suas pernas, o avental enrolado na mão, os olhos arregalados de espanto.
    - Não te preocupes, Júlia. Depois falo contigo. Põe três pratos na mesa.
     E a mulher a dias voltou para a cozinha, perguntando a si própria quem seria aquele homem e se a menina Gigi estaria boa da cabeça.
     - Anda, Bambino! Vem p´rá cozinha! – ordenou ao gato, que tinha ficado à porta do quarto, a tentar perceber o que se passava…
     - Gigi, vais cantar com este xaile, numa casa de fados de Lisboa! Este quarto é pequeno demais para a tua voz. Tenho um grupo. Nunca deixei de tocar guitarra portuguesa, sabes? Sempre vivi amarrado às suas cordas. E enviuvei, há pouco. Vim buscar-te, finalmente… - disse o velho professor, estendendo-lhe as mãos, com a felicidade a brilhar-lhe no rosto.
     - Ah, professor, estou velha! Olhe as minhas rugas, as minhas mãos, os meus cabelos brancos…
     - Que importa isso, se a tua voz é a  mesma e o teu  sonho está vivo?! Vivo, Gigi! Lembras-te das rodas que tu fazias, no recreio da escola, com as tuas colegas e tu a cantar o fado, no meio delas? Já era o sonho! Ele escalou montanhas dentro de ti, durante quarenta anos! Tem luz própria. É misterioso como a selva. É feito de desejo. E o desejo não aceita o Impossível. - respondeu com uma  convicção que levou Gigi a sulcar as águas do lago azul dos seus olhos e a beber com ele o vinho da boda.    





11 comentários:

  1. Maria João,
    Belíssimo!
    "E o desejo não aceita o impossível."
    Convite a que não deixemos de sonhar,
    em que pesem os "apesar de"...tantos e quantos,
    grande abraço,
    Eliana Crivellari

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  2. Conheço bem Portugal, gosto de cada sítio, costumes , e patrimônios.Aprecio os jovens autores portugueses, a Maria João conheço agora, li todos os textos com prazer e admiração.
    Livia Abdala-Líbano

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  3. O VINHO DA BODA...Mais um conto magnífico que a Maria João nos oferece, um antecipado mas belo presente de Natal!
    Uma vez mais a faceta humana da escritora transparece, através do altruísmo, da abnegação das personagens que constrói. Elas são o espelho do próprio sentir de quem as idealizou.
    A Gigi é mais um exemplo disso...Cumprindo a sina ou fado português, ela de tudo abdica, numa doação, numa entrega do seu ser à irmã que dela dependia. Mas,interiormente, nunca baniu os seus anseios, as suas aspirações...até ao dia em que os viu corporizados na pessoa do seu antigo professor que abriu as asas aos seus sonhos...
    Há sempre uma esperança contida naquilo que a Maria João escreve: Há o drama que a Vida muitas vezes contém, mas lá vem uma ténue luz ao fundo do túnel...
    Parabéns, Maria João. Gostei muito, como sempre. Que a sua grande inspiração a ilumine para sempre!!!

    Maria Luísa Figueiredo da Silva

    Portalegre - Portugal

    Em 5 de Dezembro de 2011

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  4. É importante continuar a sonhar, nunca desistir. Que lição de esperança e coragem! Ler este conto é como ouvir um Fado e deixar-se embalar por ele....e querer "ouvir"mais.
    Carlos - Leiria

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  5. Mais um conto soberbo da Maria João! É incrível como esta prosa te agarra, te habita, te molda, te arrebata para uma outra dimensão temporal! É a mesma experiência que se pode fazer ouvindo o fado quando magnificamente cantado. Tive a impressão de “fazer uma visita guiada” à história, à casa da Gigi: ao ler este conto parecia-me que havia uma câmara que me fazia “ver” e “ouvir” o que era descrito. Há uma magia neste texto! O fado está intrinsecamente ligado à “saudade”, palavra que também faz parte do património cultural imaterial da língua portuguesa : é intraduzível noutras línguas! E este “Vinho da Boda” é todo ele impregnado de saudade, mas uma saudade libertadora e redimida não resignada e tristonha. Que bela e original (como é o fado) homenagem ao fado. Muito obrigado, Maria João!

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  6. Mais um conto soberbo da Maria João! ...

    esqueci-me de assinar:
    José Cruz - Lyon (França)

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  7. As palavras de Maria João são muito intensas e sábias e este conto representa um hino ao fado, que foi há bem pouco tempo considerado Património Imaterial da Humanidade. Neste conto, Maria João escreve com muita emoção e transforma as palavras em verdadeiras relíquias da composição.

    Parabéns Maria João!

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  8. Comovente a persistência de Gigi ao nunca desistir do seu sonho e da sua vocação de artista, «a parte mais profundo de si»
    Mas talvez mais comovente ainda a sua decisão de renunciar a esse sonho(«atando-o numa caixa») para dar «o melhor de si mesma» à irmã, que nunca abandonou.
    A Maria João continua a comover-nos com a sua sensibilidade humana e com a beleza e originalidade da sua escrita.
    Pedro Vaz Patto

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  9. Minha querida amiga,

    tu tens um dom raro de uma escrita que comove tanto, mas tanto! O Fado agradece e todos nós, leitores, agradecemos a tua maravilhosa escrita!

    Abraço-te com muita amizada
    Jorge

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  10. Maria JOão, obrigada mais uma vez pelo seu envolvente texto. Vc é magia pura! Nosso prazer é renovado a cada conto que nos apresenta.
    Bjs
    Bel

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  11. Embora tardiamente, venho agradecer, a cada um de vocês, comentários que muito me sensibilizaram, e que deram ao próprio texto novas dimensões e significações. Sim, foi com emoção que reli os vossos comentários e me apercebi dos belos textos que produziram, a partir deste.
    Ao escrever esta homenagem ao Fado, ou seja, este misto de realidade e ficção, tentei traduzir a beleza de certas pessoas, porque a amo e também porque ela própria (a beleza...) pode fecundar a inspiração.

    Um grato abraço para todos
    Maria João Oliveira

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