11 de março de 2012

Um grupo de militares afectos à Unidade da Guarda Presidencial tinha queimado as cubatas e todos os haveres da população, para ali ser construída a pista de um novo aeroporto

O Não-lugar de Montantu

Habitava o exílio, há muito, e enfrentava ainda as emboscadas da dor, à procura de uma luz na penumbra. A sua casa era uma velha bicicleta que tinha os seus próprios caminhos. Por vezes, levava-o à cubata de mãe Felismina que sorria, ao ouvir o som dos seus passos. Uma cubata que ele tinha erguido, a curta distância de um rio de pontes destruídas por armas, finalmente, silenciadas. Estava cansado de viver ao relento, com mãe Felismina e Runguinha, sua irmã. Um grupo de militares afectos à Unidade da Guarda Presidencial tinha queimado as cubatas e todos os haveres da população, para ali ser construída a pista de um novo aeroporto. Nem as enxergas, nem as cabaças para a água e outras bebidas, nem o almofariz de madeira de mãe Felismina tinham escapado à sanha dos militares. Mas o que mais lhes doeu foi a perda do único retrato de pai Joaquim, caldeireiro ambulante, homem corajoso e destemido na defesa dos mais pobres, que fora vítima de uma emboscada, durante a guerra.
- Montantu, filho, p´ra onde vais?
- P´rá cidade, mãe! Se não for, morremos de fome! Volto p´ró mês que vem…
Ao ouvir aquelas palavras, mãe Felismina ficou em silêncio e apagou-se, mais uma vez, num canto escuro da cubata, com as mãos cruzadas sobre um colo que também tinha embalado Daniel, o filho mais velho, que lhe contava tudo, até desaparecer, para sempre, no negrume da guerra. Na sua alma, latejava um pó acumulado de ilusões baleadas.
- Mãe, eu sei que Montantu lhe faz falta…Desculpa ser tão pequena! Mal posso com água e lenha… estendo mal roupa no capim… Me queria mais alta e velha como a senhora…
- Não diga isso, Runguinha! Deus lhe castiga! Não pôde meninar… e agora… queria ser velha de bengala como eu?! Estou cansada de estar viva, filha… Ah, e julga que pode desobedecer ao tempo? Não há precisão, Runguinha. Ele toma conta…
Montantu Luisão escutava-as, em silêncio, com o coração a bater-lhe violentamente, no pescoço. Os seus olhos negros pareciam duas brasas acesas. Ergueu-se, calçou apressadamente as sandálias e deu alguns passos em direcção à porta. Durante breves minutos, contemplou o rio, lá em baixo, como quem se despede, mas começou a caminhar em sua direcção. Transpirava, abrasado de calor.
- Juro que esta magreza de vida vai acabar! - murmurou. – Ah, Daniel… como tu e o Alfredo… me fazem falta!...
De súbito, estremeceu. De um bolso dos seus calções, caíra um pequeno caderno de capa preta que se afundou na areia quente da tarde. De imediato, dobrou os joelhos e ergueu-o, devagar, como se tivesse, nas suas mãos, um objecto sagrado. Apertou-o de encontro ao peito e voltou a colocá-lo no bolso. Ainda em sobressalto, olhou a linha do horizonte, como se ele tivesse paredes e precisasse de encostar o seu corpo. O sonho enchia-lhe os ouvidos de gritos de aves e rumor de ondas. Aspirava, como se fosse pela última vez, o cheiro quente do pequeno rio e aquele silêncio universal, cortado, de vez em quando, pelo canto de uma ave. Naquele momento, Runguinha correu para ele e abraçou-
-o pela cintura.
- Melhor não ir, Montantu…
O jovem mulato sorriu e lembrou-se dos tempos em que a sua irmã caçula lhe pedia que apanhasse estrelas para ela. Pensativo, acariciou-lhe os cabelos crespos e negros, mas ao colocar-lhe as mãos nos ombros, sentiu que uma ferida se abria, dentro dele, e mal reteve um grito. Os ossos roçavam-lhe a pele, mais do que nunca, sob o vestido azul de chita.
- Tem que ser, Runguinha…
Fustigado pelo sol quente e vermelho de África, Montantu Luisão partiu, na sua velha bicicleta, rumo aos parques sombrios da grande cidade, onde encontrava o pão que o sujava por dentro e o atirava, uma vez mais, para um exílio, em que se sentia fracturado e objectivado. Carregava o não - lugar desde a infância e a solidão tinha dedos metálicos, à volta do seu pescoço. Dedos que, no entanto, o empurravam para a busca de um lugar onde o seu ser estilhaçado pudesse libertar-se daquele sistema de morte e alcançar a “civilização da ternura”, de que lhe falava o missionário Alfredo, raptado pelos rebeldes, quando levava alimentos, para uma povoação faminta, no interior do mato. Tinha saudades do seu abraço, um abraço que lhe abastecia todos os vazios. E também daquele sorriso que fazia nascer a vida e florescer a esperança. Jamais podia esquecer as missas que ele celebrava, às escondidas, sob a abóbada das estrelas, no mato iluminado por archotes. Quando a notícia da sua morte correu célere pelas montanhas, sentiu-se culpado de ainda não ter pisado uma mina. Se soltasse, de repente, o grito que tinha dentro de si, encheria o mundo.
Um dia, também ele foi raptado, em plena estrada de terra batida. Sentia ainda o sangue quente do missionário Sílvio Fiorini que fez do seu corpo escudo, para lhe salvar a vida. Alguns meses depois, o seu irmão mais velho era assassinado. Pouparam a vida de mãe Felismina e Runguinha, mas as sementes e as ferramentas foram pilhadas. E colocaram, no ombro de Montantu, uma arma, cujo peso era uma espécie de ligadura que ainda o comprimia por dentro.
Mais do que nunca, sentia a urgência de partir. Porém, baloiçava entre dois pólos: a terra e o mar. Amava aquela terra vermelha e o cheiro dela, mas estava cansado de habitar, na sua própria pátria, um exílio permanente. Achava que o seu jovem país não era “inviável”, como muitos diziam. Contudo, aquela urgência corria dentro dele como uma hemorragia que já não podia deter. Sabia que aquele sonho já tinha assassinado milhares de africanos, mas comprou um lugar numa embarcação e partiu rumo à Europa.

Cheirava, finalmente, a mar. Porém, Montantu Luisão sentia a angústia como uma abóbada escura por cima dele, a separá-lo das cores, dos sons, dos cheiros de África… Olhava o céu alto e mudo, como se procurasse uma resposta. O sol brilhava sobre as ondas de um mar nervoso, inquieto, espicaçado pelo vento. As tábuas do barco rangiam debaixo dos pés e, à sua volta, corpos esqueléticos de homens, mulheres e crianças, disputavam o pequeno espaço do convés. Ao olhar aqueles rostos parados, esculpidos por longos anos de guerra, paciência e fome, deixou escapar uma lágrima.
Naquele momento, uma menina mulata, de vestido amarelo e olhos claros, ergueu-se, avançou para ele e ofereceu-lhe, em silêncio, um pequeno ramo de flores brancas, já murchas. Uma trança comprida aparecia debaixo de um lencinho vermelho de bolas pretas. O seu sorriso tinha a frescura de uma nascente de água e a beleza da inocência.
- São “beijos de mulata”… - esclareceu a mãe da criança, com ar de quem pede desculpa. Parecia que aquelas flores tinham nascido de uma dor calada que todos queriam esquecer. Por isso, se escondiam dela, tapavam os ouvidos, fechavam os olhos…
Movido por um assomo de afecto, Montantu dobrou os joelhos, tomou o rosto da menina entre as mãos e, em seguida, abraçou-a sem conseguir articular palavra. Apenas se ouviam as ondas a bater no casco da embarcação. Olhou à sua volta e apercebeu-se de que os seus companheiros de viagem sorriam, como se, naquele momento, o cheiro do suor e da angústia se tivesse diluído nas águas.
Naquela noite, conseguiu dormir algumas horas, e, ao acordar, reparou que o mar estava sereno, com a lua a espreitar através das nuvens. Porém, sentia, cada vez mais, a fome e a sede da distância. Lembrava-se da tristeza de mãe Felismina, do doce sorriso de Runguinha, dos amigos que andavam em muletas e daqueles que rasgavam as mãos, na dureza das minas e ficavam sepultados nos buracos, para sempre. Os seus olhos negros tinham voos de pássaro aflito. Levou a mão ao bolso, para sentir a textura acolhedora do caderno de capa preta, e para que a esperança entrasse na sua alma e já não saísse... Um dia, havia de voltar. Mais uma vez, abriu o caderno e, com o som do mar como pano de fundo, começou a ler, em voz baixa, a primeira página de um livro que não chegou a ser concluído:

Um cheiro que não se pode descrever, nunca se esquece. Entranha-se em nós para o resto da vida. E o teu cheiro, Mãe - África, acompanha-me e suaviza as minhas dores. Em ti, escuto o canto magoado da sobrevivência. És fogo que me atrai e transforma. Dás-me

as asas de que preciso, para subir, bem alto, por cima do vazio que me cortava, lá longe, como fio de navalha.
Os teus meninos pisam minas, ardem de febre e morrem de meningite, malária, diarreia. Os teus meninos têm a barriga inchada e os olhos fundos. O teu chão tem milhares de cruzes e milhares de corpos incompletos que gostavam de dançar Kizomba.
E sei que estás cansada de transformar em lenha as árvores que te davam frutos e sombra, porque não podes pagar o preço exorbitante de uma bilha de gás.
No entanto, agarras-te, com todas as tuas forças, a qualquer possibilidade de recomeço. Quando tens de te refugiar num acampamento, ergues-te e plantas flores, à sua volta. Flores e legumes que os soldados arrancam e levam. E quando, mais uma vez, te deixam de mãos vazias, procuras sementes, de novo…Por isso, quem sente o teu cheiro, não pode mais ignorar a viagem que ainda não fez, o convite do barco, o apelo do mar, o chamamento das tuas feridas…
Há quem pense que não tens asas, que não tens futuro, mas tu amas, Mãe-África! Por isso, transformas os obstáculos em trampolins. E os teus tambores fazem estremecer os mais cépticos. Um dia, poderás fixar os vampiros, nos olhos, e eles acabarão por recuar.

Agora… vou dar uma aula na escola da Missão. Amanhã, continuarei a escrever, para ti, Mãe - África…

Alfredo Rebelo, missionário

- Mas não escreveste mais, meu amigo… - murmurou Montantu, fechando o caderno, com a saudade cravada no peito como lâmina afiada. – No dia seguinte, foste raptado por homens armados...
Naquele instante, sentiu um arrepio, como quem entra numa estranha dimensão, ao ver que o sol se tinha escondido, subitamente. Em poucos minutos, surgiram nuvens carregadas de chuva e ventos ciclónicos. O ar arrefeceu e o mar rugia sedento de vítimas. A embarcação estalava com as investidas das ondas. Todos temiam o excesso de peso. E não tinham equipamentos de sobrevivência. Soltavam gritos, pedidos de socorro, mas só o estrondo das vagas lhes respondia. Já perto da costa, a embarcação afundou-se. E as pessoas morriam afogadas e feridas pelas tábuas desfeitas. Montantu sentiu-se arrastado a uma profundidade de quinze pés, mas, com duas fortes braçadas voltou à superfície. A menina… a menina do vestido amarelo, meu Deus! E o caderno... o…caderno… Deixou-
-se levar pelas vagas, mas, de repente, virou-se de barriga para baixo, tentando nadar para a costa, com todas as forças que lhe restavam. Uma corrente gelada atravessou-lhe o corpo, mas o seu desejo de viver levava-o a suportar, com energia, o intolerável. Pedia socorro, mas tentava libertar-se do pânico, para sobreviver.
De súbito, viu dois botes que vinham em auxílio dos náufragos, mas a boca encheu-se de água e, naquele momento, começou a desfalecer. Chocou contra qualquer coisa que já não identificou, mas ainda se apercebeu que o retiravam da água. Perdeu os sentidos, naquele instante. Alguns minutos depois, abriu os olhos.
- AL…ALFREDO!... Ah, o teu abraço! Estou… morto, não é verdade? Vieste… buscar-me, meu amigo!
- Não, Montantu Luisão! Nós estamos vivos, acredita! E não adoeceste! Como é possível?! Estou no Centro de Acolhimento, de Lampedusa, há muito. Está sobrelotado… - disse Alfredo, cabisbaixo, apreensivo, com os olhos verdes húmidos. - Vá, amigo, estás a tremer de frio. Vamos mudar de roupa.
Com o auxílio de um jovem tunisiano que já o tinha ajudado a salvar inúmeras vidas, Alfredo vestiu-lhe, rapidamente, um quente fato de treino, calçou-lhe uns ténis, secou-lhe o cabelo com uma toalha…
- E agora vamos ao refeitório… -disse, já em terra firme.
- Não… não posso… acreditar! Não te mataram?! – E o jovem ergueu-se, apoiando-
-se no ombro do amigo, com a felicidade a brilhar-lhe no rosto magro, de pele curtida pelo sol de África. - Não te mataram?! – repetia, atónito, cheio de júbilo, com a brisa do mar a sacudir-lhe os cabelos.
- Foi um boato! Os raptores acharam que eu tinha jeito para tratar dos seus feridos.-
- respondeu Alfredo, com um sorriso que lhe iluminou o rosto comprido de barba grisalha. – Só me libertaram, quando a guerra acabou.
- Tenho medo de ser deportado… Não quero perder-te, outra vez…
- Não vai ser fácil, mas confia em mim, amigo. Aqui, há turistas a tomar banhos de sol e cadáveres a boiar, à espera da polícia… As pessoas têm receio de falar. E há muitos imigrantes que são expulsos…Mas tu vais estar na ilha, só uns dias. Hás-de conseguir, amigo! Dobraste o cabo, terás a Índia! Vou contigo, mas ainda volto, porque há muitos naufrágios por aqui…
Naquele momento, o jovem mulato respirou fundo e, com um aperto na garganta, olhou o horizonte, no exacto ponto em que o mar se une ao céu. – Quando voltaria a abraçar mãe Felismina e Runguinha?
- Um dia, voltaremos à nossa Mãe - África, Montantu… Um cheiro que não se pode descrever, nunca se esquece…
- O mar levou-me o teu caderno de capa preta, sabes?
- O meu caderno?! Não entendo!
- Fui à Missão, onde me ensinaste a gostar de livros. Eles destruíram tudo, mas o teu caderno de capa preta estava lá, intacto, no meio dos escombros…
- Ah, obrigado, meu amigo! Não sabia que o tinhas guardado!... – exclamou, com um sorriso que cintilou como um clarão, no azul da ilha. E fixou o olhar, num mar emudecido como um campo de batalha depois da luta.
Já a noite descia sobre Lampedusa, quando Montantu, deitado numa enxerga, e com o rosto vincado pela fadiga, conseguiu fazer a terrível pergunta:
- Salvaram … uma menina de vestido amarelo?
- Foram resgatados, com vida, vinte e um dos cem ocupantes do barco. Amigo, são todos adultos…
- Ah… Ela era linda! Ofereceu-me flores brancas…
Alfredo abraçou-o em silêncio. E, no reflexo dos seus olhos, Montantu sentiu-se, finalmente, resgatado do exílio.

7 comentários:

  1. Um dos mais belos textos de Maria João. Leio, releio e sempre renovada a emoção.
    Parabéns Amiga.
    nanamerij

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  2. Concordo com a Ana Merij, minha querida amiga!

    Um dos teus mais belos textos!!!! Vou partilhar!!!

    Muitos beijos para ti!!!
    Jorge

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  3. Um hino à Mãe-África, cujos dramas, em toda a sua crueza, não conseguem apagar a chama da esperança. Uma chama que brota do amor; O amor da família africana e de quem por África dá a vida para ser fiel ao chamanento de Deus.
    Muito obrigado, Maria João, por este texto, realista na descrição desses dramas, mas belo porque todo ele embebido dessa esperança.
    Um abraço
    Pedro Vaz Patto

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  4. É difícil dizer algo à altura deste conto comovente, todo entranhado de humanidade, de dignidade, de pureza, um hino à amizade. É um conto triste porque relata o drama e a extrema pobreza de tantos africanos à procura de dias melhores. Mas ao mesmo tempo, desta situação pungente, emerge uma riqueza de valores que deveria fazer-nos reflectir, nós ocidentais. Nesta sociedade de consumo a que pertencemos, temos tudo mas falta-nos talvez o essencial: Deus, a família, a amizade, ... Como agradecer-te, Maria João, por mais um texto tão belo e denso?
    José Cruz (Lyon - França)

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  5. É o primeiro texto que leio de Maria João e estou preplexo com a intensidade da escrita e com a mistura de um realismo que nos coloca no lugar do conto, com a poesia que, apesar de triste, nos (me) eleva e impele a fazer mais por quem precisa.
    Paulo Lobo
    (Lisboa)

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  6. Foi com verdadeira emoção que reli este conto. Senti-me em África, continente que não desiste. Das palavras sente-se o cheiro, ouve-se o batuque.....e até consigo ver "...os olho negros de pássaro aflito..."". Extrordinária esta escrita de quem nunca pisou terras africanas e escreve como se lá tivesse vivido a vida inteira e comungado do sofrimento daquele povo.
    Acredita, minha Amiga, que África tem um cheiro intenso que não se consegue descrever e...se calahar é por isso que eu jamaia vou conseguir esquecer aquela terra.
    Obrigado por escreveres tão bem a minha terra!!!!

    Carlos (Leiria)

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  7. Foi com enorme emoção que li este novo conto da Maria João. Ele está cheio de realismo, nos sentimentos, nos temores, nas frustrações de quem enfrenta os perigos da guerra, da incursão de estranhos, no seu "habitat" natural. Há um misto de conformismo mas, ao mesmo tempo, de libertação em relação aos opressores. E é assim que Montatu resolve partir, à procura de melhores dias. Como muitos refugiados, o barco é uma ilusória forma de liberdade, pois naufraga, ceifando os sonhos de muitas vidas. Montatu escapa e tem a felicidade de encontrar o velho amigo, considerado desaparecido há muito. Aqui, a amizade revela-se no seu mais elevado grau!
    Um conto cheio de dramatismo, mas ao qual a Maria João conseguiu, mais uma vez, incutir um raio de esperança.
    Parabéns, Maria João!!!


    Maria Luísa Figueiredo da Silva

    Portalegre, Portugal

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