25 de março de 2012

Ah, se os netos pudessem crescer como o trigo que amadurecia, festivamente, entre papoilas…

OS GIGANTES DA PLANÍCIE



                                                                                                             Maria João Oliveira

      Pensativa, Rosa Maria colocou o tecido de chita na mira da agulha e pedalou na sua máquina de costura, durante alguns minutos. De súbito, as cataratas e as dores nas costas fizeram saltar uma lágrima que lhe caiu no avental de quadrados azuis. A costura sempre fora o seu “governo”, mas estava sem reforma, por nunca ter descontado para a Segurança Social.  E agora? O que podia ela fazer, com dois netos a seu cargo e uma modesta pensão de sobrevivência do seu saudoso João? Sentia-se como ramo separado da videira. Ah, se os netos pudessem crescer como o trigo que amadurecia, festivamente, entre papoilas…  Cortou, nervosamente, a linha com os dentes e, através da janela, fixou o olhar no campo de girassóis que se estendia na imensidão criadora da planície e que brilhava ao sol como mancha de ouro. Uma planície que sempre fora o palco do seu destino. E ainda vivia em comunhão com ela. A sua forte ligação à terra levava, por vezes, a sua voz, pelos campos fora, a ondular como as searas. Apesar de tudo, cantava ainda. E quando o sol desaparecia, aos poucos, na linha do horizonte, numa apoteose de fogo, Rosa Maria, fascinada, chorava,  porque um pôr-do-sol alentejano, às vezes, também dói. Graças àquela beleza que não envelhecia nem morria, os seus olhos nunca tiveram a secura dos restolhos. Aquela secura que a fome, às vezes, provocava na alma, e impedia as pessoas de sentirem as cores, os cheiros, os sons, o pulsar do coração da terra, o pulsar do coração daquele “oceano de terra”, como dizia Torga. Enquanto enfiava, penosamente, a agulha no buraco de um botão, Rosa Maria tentava atar os fios soltos da sua infância. E viu-se deitada dentro de um caixote, à sombra de uma azinheira, enquanto o pai, que nunca chegou a maioral, guardava as ovelhas do patrão, com o cão sempre atento e de olhos postos no dono, e o irmão mais velho, que não queria ser ajuda, nem gostava de ir aos mandados, investia de mãos na cintura, contra um arbusto que se transformara, de repente, num touro bravo. Mais tarde, ela já se apercebia da graça  das cegonhas nos postes da Rede Eléctrica e não se cansava de contemplar os borregos pretos ou branquinhos como a neve,  a cabriolar, ou de joelhos no chão e o rabito a acenar para as mães que os mimavam com marradinhas e lambidelas, ao som das cegarregas que ela tanto gostava de ouvir.  Entretanto, a sua mãe Emília, bonita e corada como uma romã, ia aos cardos e aos agriões, para fazer uma sopa de couratos, acompanhada de pão duro e azeitonas do ano anterior, que a D. Felismina gostava de dar aos pobres, com largas fatias de toucinho amarelado que já não tinha lugar nas suas arcas bem abastecidas de carne salgada. Duas vezes por ano, os seus criados levavam, num cabanejo, a casa dos mais pobres, uma panela de cachola e assadura. “Graças àquela Senhora”, não tinham de comer sempre capacho ou uma açorda solteira de manhã e outra à noite. “Em cima” da sopa, comiam, quase sempre, fatias de faneco  bem untadas de toucinho e, às vezes, tinham  migas  e chouriço assado, aos domingos, com azeitonas arretalhadas.
      Gostava das histórias que o avô lhe contava, aos serões, junto da lareira, de abanico na mão, quando o patrão lhe dava uns dias de férias, pelo Natal. E jamais esqueceu a história dos “gigantes da montanha e dos anões da planície”, que ele lhe contava e interpretava à sua maneira, enquanto a ceia chiava na tigela de fogo, bem assente na trempe em brasa. A avó enfiava a agulha, metia o ovo no calcanhar da meia e ficava também a ouvi-lo:
          “Era uma vez uma família de gigantes. (...) E depois o que fez a menina “giganta” que era curiosa como eu? – perguntava ela ao avô.
      – Lançou dentro do avental, que cobria o campo quase todo, os jornaleiros, a charrua e os cavalos, julgando que eram lindos brinquedos. O  pai gigante franziu as sobrancelhas e disse à menina que não eram brinquedos, mas sim pessoas e coisas que deviam ser amadas e respeitadas. – E a menina “giganta”,  teve de meter tudo, de novo, no avental e deixar os brinquedos onde os descobriu,  porque “os gigantes da montanha morreriam de fome, se os anões da planície deixassem de lavrar a terra e de semear o trigo”.
         Ao lembrar esta história, Rosa Maria respirou fundo, lambeu a linha, meteu a ponta   entre os dentes e sentiu cair outra lágrima sobre o avental de quadrados azuis.
      - Por isso, é que tu foste preso e torturado pela Pide,  meu  avô. E, na chaminé onde  me contavas histórias, suicidaste-te, quando te viste obrigado a  deixar a malhada, sem reforma, tolhido pelo reumático e pela indiferença do patrão…-  murmurou, deixando cair o dedal  que tinha no dedo médio da mão direita.  – Tu achavas que nós todos estávamos metidos num grande avental. O avental dos patrões, onde trabalhávamos de sol a sol e nos tornávamos “anões”, sem o sabermos… Tinhas razão, avô. E hoje, sinto-me dentro dum  avental parecido, sabes? Morreste-me, avô, e mal sabias tu que o teu neto, que brincava às touradas, na herdade, viria a morrer também, ao pisar uma mina, na guerra do Ultramar… Mais tarde, partiu o João, o meu companheiro de sempre, e a  Rita… a minha filha… morta naquele acidente, com o Chico, pai dos meus netos.  Foram todos… todos… Se não fossem as crianças…
      Naquele momento, olhou, sobressaltada, o relógio antigo que tinha numa parede da “casa da costura”. - Ah, não era tarde, afinal. A Joana e o João ainda estavam na escola da aldeia, embora não faltasse muito para eles assomarem, com o habitual alvoroço, ao postigo da sua porta de madeira, já carcomida pelo tempo. E, enquanto os pássaros chilreavam à volta da sua casa caiada de branco, continuou a atar os fios soltos da sua infância. Gostava de ver o pai, na hora do acarro, à sombra de um sobreiro, a talhar madeira, a fazer badalos ou a trabalhar um tarro em cortiça. Às vezes, ele sonhava com panelas cheias de libras de ouro, para lá da Ribeira da Velha, onde a mãe colhia os agriões para a sopa. Porém, ao acordar, tinha, apenas, o cajado à espera, o vento suão, os safões, a  samarra,  o suor  que lhe fazia arder os olhos e que ele limpava com as costas da mão.  Ao longe, ela ouvia o canto das mulheres que ceifavam as searas. Eram as “heroínas das planíceis e das charnecas”, como dizia o avô, que gostava de ler e lhe dizia que ela tinha olhos lindos, da cor daquela terra única, e cabelos loiros como as searas. Nos raros momentos de folga, ele aparecia e gostava de a  ver correr, à volta das antas e dos  menires da herdade.  Tinha cabelos de prata, as rugas dos oitenta anos e dores reumáticas nos joelhos, mas o seu sorriso não perdia o brilho da ternura. – Ah, avô, como tu gostavas que eu apanhasse  bolêtas,  p´ra ti! Um dia, ficaste triste, quando o meu pai me disse:
        -  “Só podes comer uma sardinha inteira, quando  a tua cabeça chegar à cantareira da  chaminé” … - Pois  é, avô, mas tu sabes que ele disse aquilo com ar de quem pedia desculpa, reparaste? E, no fundo, sabias que tinha de ser assim…
        - “Vai ver como é que está a boneca que deixaste no quintal” – disse-me, um dia, a mãe. E eu chorei muito, ao ver a minha boneca de cartão, desfeita pela chuva, lembras-te? Uma semana depois, alguém viu, na tua malhada, uma grande boneca de cartão que tu compraste numa feira. E quando o meu pai a trouxe e a pôs nos meus braços, eu senti-me como se tivesse o mundo inteiro no meu colo.
      De súbito, Rosa Maria ouviu bater à porta. Parecia o jeito de bater da sua vizinha Ermelinda, que era analfabeta, andava desmorecida, há muito, e com dores nas cruzes, mas  tinha um “coração de ouro” .
      - Comadre,  ê sei q´andas  atazanada, mas trago-te pêxe do rio, ovos da minha gadeza, e tomates e çabolas  p´rá  tu´ ceia e  dos tês gaiatos…
      Rosa Maria não se sentia capaz de pedir coisa alguma, aos seus vizinhos, mas a solidariedade batia-lhe à porta, com frequência. - E ainda dizem que nas aldeias já nada se sabe do vizinho, mas sim o que se passa no mundo! A sua aldeia não era assim – pensava ela, agradecida. O sino ainda mobilizava as pessoas. O seu rio não estava asfixiado de lixo. E a escola ainda não tinha fechado, graças à persistência da Professora Joana, que não era muito avessa à aldeia global, mas que defendia, com todas as suas forças, os valores que orientavam aquela aldeia, embora não pudesse evitar o desemprego e as pensões de reforma que atormentavam os idosos.
      - Já  na  havio as recêtas, a renda da casa tá atrasada, vejo-me em fezes p´ra pagar  luz e água, mas a  ´nha horta  tamém é tua, Rosa Maria…

5 comentários:

  1. Ah, minha Amiga! Tu és das maiores Vozes do Nosso Alentejo!!!! Os teus textos são sempre brilhantes e a tua Voz de Amor são recebidas na grande planície alentejana com ainda mais Amor!

    Muitos abraços
    Jorge

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  2. Um texto cada vez mais actual. ...também na solidariedade dos vizinhos. Neste mundo de "Gigantes" alguns "anões" ainda dão as mãos...
    A determinada altura da leitura senti-me diant de um quadro sobre o Alentejo. Só as tuas palavras para fazerem isto. parabéns. Tens verdadeiramente um dom e nunca deixes de o por a render. Por favor.
    Abraço
    Carlos

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  3. Gostei muito do texto, o qual reflecte na perfeição a vida dura e sofrida das gentes do Alentejo. Como alentejano, eu só tenho a dizer que o "meu" Alentejo é lindo e eu gosto muito de passear pelos campos ao fim da tarde.

    Parabéns pelo texto e parabéns por se lembrar dos alentejanos.

    Manuel Garcia
    Prazeres
    Alentejo

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  4. Quando leio os teus contos, Maria João, preparo-me para ter o tempo de saboreá-los, de interiorizá-los e, frequentemente, dou-me conta que "entrei" no texto como se tratasse de algo meu. Mais uma vez fiz esta experiência mágica ao ler "Os gigantes da planície"! A sensação final é de uma certa melancolia triste por estas vidas tão sofridas, pelas injustiças que imperam mas que não conseguem esmagar a solidariedade entre os pobres: fez-me lembrar do evangélico "óbulo da viúva". Não posso deixar de referir a tua mestria da nossa língua, a riqueza de vocabulário e a exuberante expressividade deste texto. Parabéns, Maria João!
    José Cruz (Lyon - França)

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  5. Mais uma vez o encantamento, misturado de muita emoção, imperaram no meu espírito, com a leitura deste conto da Maria João! Ela descreve, com realismo e maestria, a vida quotidiana de um povo escravizado pelo trabalho, numa planície imensa que o olhar, embora o mais apurado, mal conseguiria abarcar. Assim eram os pensamentos e memórias da Rosa Maria: Intensos, profundos, alargados pela tristeza,revivendo passados, mais ou menos longínquos, mas onde a saudade, apesar das vicissitudes do dia-a-dia, eram uma constante sempre presente.E como foi bom relembrar-nos que a solidariedade ainda persiste entre os humanos, apesar da dureza da realidade que muitos enfrentam. Eles nada têm de "anões", são, sim, uns "gigantes" de alta estatura moral. Obrigada, Maria João, pot tê-los dado a conhecer a quem nunca teve a oportunidade de os contactar e apreciar. Os meus parabéns, mais uma vez, pelo seu magnífico trabalho!

    Maria Luísa Figueiredo da Silva

    Portalegre-Portugal

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