6 de abril de 2012

Andam sem destino, e raspam, com muito cuidado, o fundo das marmitas que servem também para aproveitar as migalhas, quando há pão e comem à pressa...


FORMIGA COM ASAS*


                                                                                                   Maria João Oliveira


      Os olhos claros de Charles estão em alerta constante, e o silêncio da indiferença branca viola, diariamente, a sua luz. Estremece com os gritos das formigas que saem dos buracos e se agitam nas ruas. São, apenas, formigas. Formigas sem território, formigas sem galerias subterrâneas, nem fardos comestíveis. Carregam pesos maiores do que o seu próprio corpo, sabem que não podem parar e que não convém fazer perguntas. Andam sem destino, e raspam, com muito cuidado, o fundo das marmitas que servem também para aproveitar as migalhas, quando há pão e comem à pressa.
     Charles recebera, há algum tempo, um convite terrível que tenta ignorar a todo o custo. De vez em quando, avista o cano de uma arma de fogo, ouve tiros e os silvos das sirenes, vê cadáveres de formigas pequenas, no outro lado da rua, e algumas ainda de pé, a receberem instruções sobre a melhor maneira de disparar um tiro certeiro. Também há formigas, já muito velhas, que se encostam instintivamente nos cantos, junto das paredes negras, para se sentirem mais protegidas. As noites são geladas e não há aquecimento, mas já não gritam nem lhes apetece sair do nevoeiro. Não falam e o que pensam talvez esteja na nuvem de gelo que lhes sai da boca. Encolhem os ombros, quando vêem os cães mortos, mal o dia desaba sobre montões de lixo e sobre o formigueiro que se agita nas ruas. Já não sonham com os casebres inabitáveis do gueto. Os seus próprios corpos são, há muito, um estorvo que eles acabam por ignorar, como se já não lhes fizessem falta. Sabem que nenhum sino vai dobrar por eles, mas isso não tem importância nenhuma. São, apenas, formigas que já não escavam, até ao fundo, a gruta negra da esperança .
      Ao percorrer, diariamente, as ruas habitadas por negros, Charles observa o vazio criado à volta deles, pensa nas suas histórias de vida e em todas as ruas do mundo habitadas pela dor. E seca as lágrimas, na manga do seu casaco coçado, em becos onde o sol não entra, talvez para não tornar  mais visíveis as ruínas e o desespero.  Doía-lhe a fome e o abandono das formigas, sobretudo das mais pequenas, sem colo, sem aniversários para festejar, sem um nariz vermelho de borracha que as fizesse rir, e com o medo a povoar-lhes os dias e as noites. Ele observa o contraste entre luxuosos automóveis que avista ao longe e os casebres dos proprietários brancos, cuja renda exorbitante o tinha levado a trabalhar aos sábados e domingos, para ajudar a mãe a enfrentar aquela despesa. Ah, se este menino fosse branco, ia longe…- desabafa ela, ao saber, pelas vizinhas, que o filho é admirado e invejado na sua escola. Uma escola degradada e sem material escolar, que a fome crónica ainda não tinha fechado.
      No entanto, o terrível convite repete-se e Charles sabe que os gangs não perdoam. Um dia, o tiro parte detrás de um carro estacionado, no outro lado da rua. O jovem negro do gueto atira-se ao chão, e a vitrina suja de uma montra desaba, em pedaços, sobre o seu corpo. Ao vê-lo entrar em casa, ensanguentado, a mãe sobressalta-se, solta um grito, mas logo entende o brilho intenso daqueles olhos claros. Ele é uma formiga sem infância, mas nascera com asas e não as tinha perdido. Sabe que o seu filho tem um sonho que nada nem ninguém pode estilhaçar. Um sonho que o torna incansavelmente sobrevivente. E se tivesse de o escrever com o próprio sangue, não hesitaria em o fazer. O sonho amadurece no seu coração e circula como seiva, por todo o seu corpo, com a liberdade do oleiro que molda o barro com as suas mãos.
     Pouco depois, Charles aprende a tocar bateria e viola e vai ao encontro de um grupo de jovens de todas as raças. Há sementes e água. E essa água corre, transformando tudo à sua passagem. O jovem negro do gueto, que lê muito e gosta de escrever, começa a trabalhar na redacção de uma revista, elo de ligação entre sementes de várias cores que frutificam em toda a parte e dão colo e pão a formigas sem infância, de mãos roxas e gretadas, ventre inchado e chagas nos pés, que vivem na rua, que não têm sabão para lavar a cara e para quem o seu próprio nome é uma coisa estranha para os seus ouvidos desabituados. São, apenas, formigas. Formigas pequenas, com os dias todos iguais. E, por vezes, as estrelas reflectem-se em olhos negros que interrogam os homens. Ele bem o sabe e sonha levar, a todas, a água que tudo transforma e mata todas as sedes.
     Certa noite, o jovem negro do gueto, que fala pausadamente, que tem paixão pela ciência, que gosta de tirar fotografias e de compor música, que se destaca pelo que diz e, sobretudo, pelos seus silêncios, adormece, feliz, na sua enxerga de palha. Em breve, iria a Roma representar o grupo de jovens de todas as raças que sonha, no meio dos escombros, um mundo unido. Os seus amigos já tinham conseguido recolher o dinheiro necessário para a viagem. E aquela expectativa veste-lhe os dias, com o júbilo da esperança e o sabor do resgate.
     Uma semana depois, no gueto negro, o espanto toma conta de uma multidão arquejante e incrédula, cujas lágrimas desabam sobre a urna que jovens brancos levam aos ombros, acompanhada por um formigueiro de crianças negras que choram e estão perplexas, por nunca terem visto brancos no gueto e por olharem as suas mãos pequenas e não acreditarem na perda, e por olharem as suas mãos pequenas e não acreditarem na escuridão daquela ausência. Porém, Charles tinha sido atingido a tiro, ao regressar da escola. Eram duas horas da tarde. Subira os degraus da escada, como era habitual, mas já não pôde abrir a porta de sua casa. Uma rajada, disparada atrás de si, atingira-o, mortalmente.



* Texto inspirado na vida de Charles Derrick Moats 


    
Leia sobre Charles Moats em mais informações.[ Abaixo]


 
Charles Moats – “Charles dos guetos negros”
9 de novembro de 1951 – 28 de junho de 1969

“Hoje se pensa que o ódio e a violência sejam o segredo, a forma de fazer progredir a humanidade. A nossa revolução avança contra esta mentalidade. Ela leva o amor e dá Deus ao mundo, e coloca ao Seu serviço família e riquezas, arte e ciência, política e trabalho, filosofia e teologia, vida e morte”. Era o que Chiara Lubich pedia aos jovens do Movimento dos Focolares e Charles, no gueto onde vivia, deu a vida por estas palavras revolucionárias.

Charles Derrick Moats nasceu em Chicago, em 1951. Afro-americano, numa cidade onde a criminalidade se impõe e o problema racial está presente com toda sua violência. Nasceu de um pai que nunca conheceu e de uma mãe decidida a colocar os seus quatro filhos no “caminho certo”, mas com problemas de alcoolismo. Morava numa zona residencial, mas quando tinha 12 anos sua família transferiu-se para Robert Taylor Home: o gueto de pior fama da cidade. Naquele ambiente era fácil cair na armadilha da criminalidade e da violência. E Charles, inteligente como era, chamou logo a atenção e começou a receber constantemente o terrível convite a se unir a uma das gangs do bairro. Mas, apesar disso, “Chuck” – como era conhecido – encontrava sempre a força para recusar. O que lhe dava esperança era que na sua vida ocorrera uma grande descoberta: por intermédio de um sacerdote e de uma família amiga, justamente naqueles anos conhecera os gen, os jovens do Movimento dos Focolares.

O programa deles – “Jovens de todo o mundo, uni-vos”, em nome de Deus, ultrapassando inclusive a descriminação racial – correspondia exatamente aos seus ideais, e assim, em pouco tempo, Charles, Mark, Jim e Gary, embora diferentes pela idade, cor da pele e proveniência social, tornaram-se um grupo “afinadíssimo”, que começou a ser um sinal de contradição e unidade, não indiferente na cidade dos guetos.

Charles, como Martin Luther King e muitos outros, escolheu o caminho da não violência e do amor evangélico e, junto com os gen, fazia panfletagem para explicar os seus ideais, tocava bateria numa banda de rock, ocupava-se da edição americana do noticiário gen. Mas ele era um rapaz do gueto, e o gueto não podia perdoar essas suas opções. E quando os ânimos se alteraram, justamente após o assassinato de Luther King, ele começou a ter consciência dos riscos que a sua opção trazia.

Duas vezes salvou-se de uma briga e de um tiroteio. No dia 24 de junho de 1969, porém, foi vítima de mais um atentado. Dessa vez, com uma bala enterrada na fronte, as suas condições foram logo extremas. Por algumas horas Charles voltou à consciência, cumprimentou seus parentes, conseguiu receber a unção dos enfermos, antes de entrar num coma irreversível. A notícia se espalhou e no mundo inteiro começaram as orações. Justamente naqueles dias, em Roma, acontecia o Congresso gen, do qual ele deveria ter participado, como representante dos Estados Unidos. No dia 28 de junho de 1969 confirmou-se a sua morte.

O testemunho que deu em seus 17 anos de vida veio à tona mais do que nunca. Sua avó disse: “Alguém desejaria prender os responsáveis. Eu espero que não os prendam, porque certamente não sabem o que fizeram e não estão prontos para a justiça. Mas sobre Charles não tenho dívidas. Eu conheço o meu Charles, e sei que está pronto para o céu”.

A sua historia, simples e extraordinária, fascina ainda hoje. Já é famoso o musical Streetlight, do Gen Rosso, inspirado na sua vida, e o projeto “Fortes sem violência”, desenvolvido pelo grupo, com a atuação ativa de muitos jovens, nas escolas, presídios e nos bairros mais carentes de vários países, do México à China, Alemanha, Cuba, Polônia, Jamaica, doando a todos a esperança que animava “Charles dos guetos negros”.

12 comentários:

  1. Querida amiga,

    os teus textos comovem-me tanto!...

    Obrigado por mais este belo exemplo de humanidade teu!

    Muitos, muitos abraços
    Jorge

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  2. Amiga, um texto pleno- ímpar, ainda que fale de tanta dor que o racismo produz. Mas, calar nunca. Que sua voz ecoe em cada coração, e nos tornemos de fato "humanos".
    Que Deus lhe conceda forças para prosseguir como Voz dos menos favorecidos.
    Abs, anamerij

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  3. Mais um conto em que a Maria João nos mostra todo o seu humanismo e nos alerta para as desigualdades sociais e raciais. Aqui nos aparecem formigueiros pejados de formigas, não no vaivém organizado das laboriosas formigas que buscam, incansavelmente, o alimento para o duro inverno, mas sim formigas desorganizadas,aterradas, sacudidas pela fome e por toda a qualidade de privações! Mas, de tanto sofrimento, resulta o conformismo, a indiferença pelo que se passa à sua volta. A própria vida deixa de ter qualquer significado. Não têm nome, são apenas um número de entre todos os que vão caindo.
    Mas nem todos se deixam adormecer no mundo irreal que os rodeia! Charles emerge do poço profundo em que foram mergulhados e tenta dar um novo sentido à sua vida. Luta por esse ideal e quase o consegue, até que uma bala sinistra lhe rouba a vida.
    O seu funeral, em que brancos e negros se misturam e confundem, mostra-nos como ainda se possa sonhar com um mundo de maior igualdade,sem preconceitos de raças, de cores de peles!
    Magnífico o seu conto, Maria João! Os meus parabéns. E que os seus altos ideais sejam capazes de fazer frutificar o Bem por entre a humanidade!!!

    Maria Luísa Figueiredo da Silva Portalegre-Portugal

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  4. Conheci a história de Charles "dos guetos negros" há muitos anos. Li um livro sobre ele e o grupo musical Gen Rosso produziu um espectáculo memorável "Streetlight" sobre a sua vida. A Maria João enriquece todo este património com mais um belíssimo texto de sua autoria, denunciando o racismo e todas as injustiças que lhe estão associadas. Mas com uma mensagem de esperança que nada poderá abater quem tem um ideal na sua mente e no coração. E o Charles continua a servir de inspiração e a interpelar as consciências. Vem-me à mente uns versos da minha Mãe: "Quando se vive/Por um Ideal,/A própria Vida/A cada instante/Se torna irreal/Mas quando se morre/Por esse Ideal,/A própria Vida/Nesse instante/Se torna Imortal!" (Maria Júlia Beato R. Cruz).

    José Cruz (Lyon - França)

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  5. O teu texto desperta-nos para esta realidade do racismo. Infelizmente ele está aí em tantas manifestaçõs. Importa estar alerta e nada melhor do que ter presente exemplos de vida como a do Charles e textos comoventes como o teu. Quem te lê não pode ficar indiferente, as tuas palavras mexem e remexem os nossos sentimentos mais profundos. Obrigado.
    Carlos

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  6. Num do comentário anteriores, o meu amigo José Francisco Cruz relembra-nos que quem quando se dá a vida por um ideal, a "própria vida se torna imortal".
    Cherles Moats foi assassinado por não quere pactuar com a lógida violenta dos gangs juvenis e por acreditar no ideal de um mundo unido para além de todas a barreiras raciais.
    Conheci a sua vida quando, na minha adolescência, enconteri os jovens do Movimento dos Focolares, a quem ele também pertencia e através do qual concretizava o seu ideal de um mundo unido.
    A sua vida inspira um espetáculo do grupo musical Gen Rosso (também do Movimento dos Focolares), "Streetlight", que ontem mesmo foi apresentado em Braga, no âmbito da "capital europeia da juventude", a que assitiram os meus quatro filhos adolescentes.
    E inspira também este belíssimo texto da Maria João.
    Entre outros, estes são sinais da "imnortalidade" de Cherles Moats: a sua vida e o sentido da sua morte inspiram outras as vidas de muitas pessoas e inspiram obras de arte.
    Obrigado, Maria João, por nos recordar isso.
    Pedro Vaz Patto

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  7. Olá Maria João, foi um grato prazer reencontrar-te aqui nos caminhos sinuosos da internet. Mas, felizmente, que encontrei a preciosa agulha no palheiro que eu cheguei a conhecer nas minhas viagens poéticas pelo extinto Diário de Lisboa Juvenil. Gostei de ler a tua escrita acima, que revela uma grande capacidade de manuseamento das palavras e a sua colocação no "papel" virtual. Parabéns amiga. Bom êxito para toda a tua atividade criativa que venha a ser publicada doravante. Gostei também desta revista Literária "Ofícios da Palavra".

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  8. O seu conto alerta para o perigo da vulnerabilidade do ser, mas que, com muito trabalho e dedicação consegue triunfar na vida. Existem muitos Charles por este mundo, os quais conseguem alcançar os seus sonhos graças ao espírito de sacrifício e graças à luta diária, mesmo sabendo que existem obstáculos que necessitam ser superados.

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  9. Conheço Maria João há muitos anos! Imprimir e exprimir a própria rica sensibilidade com palavras apropriadas não é tarefa comum. No entanto, lendo o texto de Maria João e conhecendo a história de Charles de perto, devo afirmar que se trata de umas das belas expressões produzidas a respeito de sua vida, especialmente dos seus últimos momentos dramáticos. A história de Charles inspirou um magnifico musical que fez o giro do mundo com grande sucesso artístico e com incríveis apelos a uma cultura de paz. Vou informar-me com os produtores da peça se conhecem o quanto Maria João escreveu a esse respeito. Lendo o seu texto saltou-me aos olhos os momentos mais comoventes dessa encenação. Um denominador comum entre a escrita de Maria João e os efeitos desse musical ligou-me no tempo à importância da arte em todos os tempos da história humana, mas muito especialmente nesse momento da civilização. Hoje mesmo falando com uma pessoa de grande nível e sensibilidade intelectual ventilamos a possibilidade de descrever nesse labirinto sombrio de decadência, sinais de esperança, germes de uma nova civilização embrionária, gestada em meio a tanta destruição e crueldade. A analogia das formigas que Maria João utiliza fez me pensar que escritoras como ela sabem descortinar no meio da tragédia justamente essa fantasiosa e real esperança de que nenhum sangue versado com inocência permanece estéril. Maria João continue nessa missão de arrancar das entranhas dos mais horrendos sofrimentos, essas sementes de ressurreição.

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  10. Essas sementes de ressurreição que tu, Maria João, tanto dás às pessoas através da tua escrita, através da tua alma, através da tua entrega e amizade é mesmo a prova de que o mundo é maravilhoso, de que muitas pessoas são autênticas estrelas mesmo que o apocalipse esteja à porta, na morte dos justos e na fome de milhares.

    Que criemos todos juntos uma corrente de paz e de Vida na escrita para que possamos tocar no coração das pessoas e criar uma Sociedade mais justa: viva, alegre, biocêntrica.

    Abraço-te a ti e a todos os Charles deste mundo
    Jorge

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  11. Maria JOão sempre me causa impacto. É uma admiração misturada com surpresa, algo meio inexplicável. Certa vez disse que ela escrevia "escandalosamente bem" e isso até fez parte da orelha de seu livro. Hj diria que ela escreve magistralmente. Não encontro palavra para definir essa escritora que tanto amo tb como ser humano.
    Bjs
    Belvedere

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  12. A beleza e a profundidade dos vossos comentários emocionaram-me muito e deixaram-
    -me sem palavras, durante bastante tempo. Obrigada de todo o coração!
    Permitam-me que eu faça referência a um deles. Não está assinado, mas sei que o seu autor é Saad Zogheib Sobrinho, natural de Bauru (Estado de S. Paulo) e filho de pais sírios. Trata-se de um Amigo de longa data, de quem me orgulho muito. Ninguém passa por ele em vão. Luta, desde os seus verdes anos, por um mundo mais justo e mais feliz. No livro "Ele morre e a gente passa", de vários autores, está bem presente a sua invulgar capacidade de dádiva e de sacrifício, a sua enorme generosidade.
    Neste momento, encontra-se em Itália, mas já me prometeu uma visita, quando passar, de novo, pelo meu País.:0)
    Muito ficou por dizer, até porque não há palavras que possam definir uma Pessoa especial, assim como também não é fácil escrever sobre Charles Moats.

    Um grande abraço para todos
    Maria João Oliveira

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